Um abade que se vestia de mulher*



  Habituados quanto ao que se pode chamar de boa ordem no plano da  fornicação, quase sempre eivada de fins reprodutivos, não nos são palatáveis as expressões humanas que fogem ao que se pode, supostamente, fiar como saudáveis. Figura fascinante, o Abade de Choisy decano da Academia  Francesa de Letras, no século XVIII, autor de uma monumental História da Igreja em 11 volumes, membro da alta nobreza, tendo sido criado com Filipe d’Orleans, irmão de Luís XIV, conservava também, o venerável abade o hábito  de se vestir de mulher na juventude sendo chamado de madame de Sancy. Travesti ilustre, personagem de difícil enquadramento em um estudo psicológico ligeiro.

Destinado à categoria de degenerescência moral por séculos, o travestismo ficou entre os becos soturnos, satisfazendo a sede inconfessável, trôpega, de alguns, mas como algo censurável. Porém, hordas noturnas de cavalheiros distintos continuarão a escorrer por esses becos. 

 A pândega carnavalesca, oásis tupiniquim onde aspirações e  frustações  ganham o bálsamo da mascarada,  permite o travestismo ocasional, lúdico, desgarrado dos papéis mantidos em riste durante a convivência quotidiana.  Ali,  um mujique pode dar vazão a seu lado Mata Hari –-- uma Julie Andrews serelepe há de saltitar pelos bailes, antes que a bruma das exigências medianas, do dia seguinte, chegue.  Na mitologia grega, talvez maior exemplo de travestismo seja o de Aquiles, o guerreiro, que durante certo período viveu como moça sendo chamado Pirra, a ruiva.

O abade de Choisy, madame de Sancy, vestia-se com garbo e requinte, apreciava ser alvo da galanteria dos homens e olhares de admiração das mulheres. A madame de Sancy,embora não passasse despercebida, guardava respeito pelo pudor alheio.  Travestido, uma mulher coquete, a madame de Sancy  tinha relacionamento sexual com mulheres, preferencialmente; quantos aos homens, prestava-lhes apenas “pequenos favores”. Na obra “ Memórias do abade de Choisy vestido de mulher” ele, o abade, revela-nos que fora criado como uma menina para fazer companhia a Filipe d’Orleans, que recebera a mesma criação para não disputar o trono com seu irmão Luís XIV. Acreditava-se que, efeminado, Filipe não se interessaria pelo poder; tendo tratamento de menina apenas, perderia a virilidade e não cobiçaria o trono. 

O abade,  ora condessa de Barres, ora madame de Sancy,  vestia-se com recato e frequentava a missa assiduamente, sendo fina no trato, obsequiosa,  e dada à prática da caridade.  Em suas “Memórias”  o abade fala que se vestia de mulher quando adulto pois “um hábito de infância é uma coisa estranha, é impossível se livrar dele: minha mãe, logo que nasci, acostumou-me às roupas de mulher.”  Nota-se também que sua mãe fora uma missivista compulsiva, o que talvez tenha influenciadoo filho, um autor  prolífico.

Madame de Sancy nos descreve com indisfarçado prazer, sem adotar uma inflexão grave,  seu culto pela elegância nos trajes, pelas pedrarias, que a tornavam esplendorosa aos olhares de todos. Nesse afã garboso, seduzia  mulheres com as quais vivia e possuía imensa satisfação em enfeitar-lhes como fazia a si.  Em sua alcova, tendo a petite ruelle** como testemunha, o  nobre abade François-Timoleón de Choisy, –-– a Madame de Sancy -–– entregava-se aos sussuros  e ensaios amorosos com mulheres.

As “ Memórias do abade de Choisy vestido de mulher “ retratam não somente as aventuras galantes da juventude do abade –– que ainda jovem abandona o hábito de se apresentar publicamente como mulher –––, mas também costumes do século XVIII,  em detalhes preciosos. O tradutor da obra, para o nosso vernáculo, observa, curiosamente, que ao falar de si o abade alterna em sua escrita ora o feminino, ora o masculino.   

Clinicamente, na psicanálise,  é perceptível a diferença entre o travestismo e o transexualismo; no entanto essa diferença não é considerada em termos de desvio de conduta  que visem a denunciar o sujeito que imaginariamente não  se enquadra ao que seria uma sexualidade normatizada; essa concepção caduca das paixões humanas se apresenta através de uma pobre consideração psicopatológica.  Porém as especificidades clínicas não são desconsideradas, pois um delírio de transformação do corpo próprio à certas psicoses pode, erroneamente, ser confundido com o natural processo de transformação de gênero do transexualismo.Por exemplo, a eviração delirante de Schreber --- descrita em suas Memórias de um doente dos nervos “analisadas” por Freud --- é estruturalmente diferente da transformação de gênero própria ao percurso transexual.

Podendo facilmente ser  taxado de libertino,  pervertido,  o abade e sua vida nos impõem a observação dos riscos de qualquer achatamento moral e psicológico. O abade, que alguns podem considerar como uma personalidade dissoluta, não adota, em suas Memórias, um tom lascivo ou plangente –-– mesmo quando se arruinou no jogo após abandonar seu travestismo requintado. Encerra suas Memórias concluindo: “ que feliz seria, se eu tivesse bancado a bela, ainda que fosse feia! O ridículo é preferível à pobreza”. E a de espírito oprime e enegrece  o que há de singular.

            *Versão modificada de um texto publicado no Cinform Online em 2010.
** “ Pequena viela” termo coloquial, em francês, que designa o espaço entre a cama e a parede.