De repente, usar
certos termos deveria representar um constrangimento capaz de ruborizar o mais
rude estivador. A era da qualidade, da saúde, da polidez comportamental, é
marcada por ações e por uma certa regulação vocabular que, paradoxalmente, não
contém a mais frívola prolixidade acerca do que se pode considerar como
saudável ou não –– programas televisivos matinais espalham receitas de bolo e
de saúde. Julgaram que trocar o termo psicose maníaco-depressiva pelo já
degradado “bipolar” representaria algum oásis para o portador deste “
transtorno”. Certamente que os mais circunspectos profissionais de saúde
advogariam em prol da suavidade que a mudança do termo nosográfico acarretou;
porém fica a questão: a mudança na designação nosográfica representou alívio ao portador ou aos que sentem o
natural incômodo frente à loucura e aos desalinhos do psiquismo?
Outro
exemplo é o do transexualismo que segundo os guias e códigos médicos não pode
mais ser tachado como uma “doença” fruto de alguma degenerescência biológica e
moral, uma anomalia, recebendo a
designação de “ transtorno da identidade do gênero” já que o transexual sente
ser do outro sexo, embora tenha nascido homem pertence ao sexo oposto,
buscando, geralmente, a troca de nome, de identidade e a realização de
cirurgias que retirem suas características masculinas ou femininas no caso da
mulher transexual que se sente um homem em um corpo feminino. Recentemente, foi
noticiado o fato de o primeiro transexual sergipano ter conseguido a mudança
judicial de seu nome e identidade, fazendo sua transposição legal para o sexo
feminino, pois psiquicamente há muito se devia julgar uma mulher, mas a mudança
de nome, identidade e a retirada do pênis ganham relevo para o transexual que
possui uma condição diferente do travestismo e suas variações. Tratar o
transexualismo como um “ transtorno de identidade” seria uma imprecisão diagnóstica ou forma
hesitante de enfrentar uma situação que embaraçaria qualquer jantar familiar ? O
que denota atenção é que qualificar uma condição subjetiva como “transtorno” a
torna mais palatável tanto para especialistas quanto para o público leigo ––
retirar o transexualismo da categoria das anomalias, dos verdugos, aplaca mais o mal-estar comum que os
problemas que o transexual venha a enfrentar. Notadamente, o transexual possui outra identidade que não a do gênero em que nasceu; relatos mostram
que a transformação transexual seria apenas uma natural confirmação de seu ser,
sendo a mudança de identidade e operação do órgão sexual etapas necessárias à
assunção do que sempre habitou o interior do transexual.
Ao
tratar a psicose e transexualismo como transtornos, estaríamos buscando igualar
determinadas condições subjetivas estruturais a fenômenos, episódios, que estão
descritos como transtornos –– uma transtorno bipolar seria uma simples
alteração fenomênica episódica da
mesma ordem que a curiosa síndrome das
pernas inquietas que pode assolar qualquer austera senhora; quem lida,
detidamente, com a esquizofrenia sabe que o fim de uma crise,
surto, não elimina a psicose. Importante separar a estrutura psíquica, condição
subjetiva, da manifestação de sintomas; considerar a loucura e o transexualismo como transtornos
ou distúrbios é uma forma benevolente de não tratá-los com a abjeção secular a
que eram destinados; mas pouco contribui, um discurso baseado em eufemismos,
para o tratamento que em ambos, na psicanálise, é iniciado caso haja demanda do
paciente psicótico, transexual etc. Eufemismos repetidos, a torto e a direito,
por várias instâncias da sociedade forjam um horizonte de acolhimento do
diferente, necessário aos tempos da saúde compulsória, do culto ao politicamente correto –– eleger um
novo termo para uma afecção psíquica não representa, necessariamente, um avanço
em seu estudo.
Em
uma psicanálise, o sujeito é chamado a dispensar seus subterfúgios, seus
eufemismos, que encobrem o desejo que insiste pela fenda de seu inconsciente. Para
Jacques Lacan, seria necessário que os analistas, na análise, possuíssem “ o
sentimento de um risco absoluto”* para que talvez, na condução do tratamento, o
desejo do sujeito o mova a um novo e singular posicionamento subjetivo e
existencial. Na condução do tratamento das neuroses –– que radicalmente difere
da condução analítica das psicoses –– o analista é que deve buscar levar o
sujeito a aluir a densa crosta dos ideais
do eu, porém sem gerar uma angústia excessiva ao sujeito sofredor. Mais
fácil é o trabalho quando o analista reverbera o inconsciente do paciente em
algum recorte na interpretação significante; para tanto não é
suficiente, nem imprescindível, reunir imensa erudição, mas sim que o analista
tenha decantado seu desejo, sua fantasia, em sua própria análise. A cultura
livresca do analista cai aturdida ante
as agruras das paixões, escutadas por ele, dos que se aventuram a enfrentar o
divã.
Não
se espera a depreciação do diagnóstico, tomá-lo como mero rótulo, pois sua
função é precisa para a condução adequada de um tratamento psicoterápico ou
medicamentoso; tratar o paciente esquizofrênico como um deprimido pode trazer novos
surtos. Na psicanálise o diagnóstico, psicodiagnóstico, não contribui como
eufemismo acalentador, senão no que nos é útil para a condução do processo de
análise do paciente. Um Otto Fenichel**
e seu didatismo maçante pouco têm do ímpeto questionador e libertário de Freud.
Só
o sujeito sofredor avalia a angústia que a dança de suas pernas inquietas lhe
evoca e talvez certos eufemismos sirvam apenas como uma contradança para quem
padece.
*Lacan, j. Seminário 23, O sinthoma. Pág.44
**Otto Fenichel, Teoria psicanalítica das
Neuroses.