SOCIEDADE TARJA PRETA*


Poderíamos tomar a defesa ingênua e romanesca de tratamentos psicoterápicos encastelados em consultórios confortáveis e refrigerados, em detrimento da prescrição e uso de psicotrópicos (tranquilizantes, antidepressivos, antipsicóticos etc) adotados pela psiquiatria dita de  “modelo biológico” ––– tolo proselitismo em prol das benesses do tratamento calcado na fala. A  questão não está circunscrita ao predomínio de uma perspectiva única de tratamento, senão ao sorrateiro fato de que há uma progressiva medicalização das afecções psíquicas e um consequente entorpecimento da subjetividade.

Há sempre um norte clínico que aqui me guia. Na edição deste mês da Revista Piauí (não é revista de psicanálise ou psicologia) uma matéria intitulada, na capa, “Surto tarja preta” me chamou a atenção. Nessa matéria uma jornalista comenta três publicações acerca da questão da escalada da psicofarmacologia, nas últimas décadas, que  ganha contornos de epidemia. A farmacoterapia psiquiátrica cresceu vertiginosamente em várias faixas etárias e populacionais até à medicalização de crianças enquadradas em  novos transtornos e síndromes. A matéria segue apontando a validade parcial dos resultados obtidos com psicotrópicos, como também delineia a presença da  indústria farmacêutica na clínica psiquiátrica, ––– presença que não se restringe a vultosos patrocínios.

Crassa pequenez de entendimento clínico, seria a negação quanto a necessidade, que alguns pacientes apresentam, de uso e manutenção de psicofármacos etc. Em determinados casos de esquizofrenia, a ausência da medicação tornaria o trabalho psicoterápico inviável; também certos quadros de depressão e pânico precisam de acompanhamento medicamentoso permanente ou temporário. Porém a prescrição indiscriminada, e a extensão diagnóstica ––– que aplica, por exemplo, o termo bipolar a uma série de angústias do paciente que, às vezes, pouco têm a ver, clinicamente, com a psicose maníaco-depressiva, atualizada como transtorno bipolar ––– não são conducentes a um tratamento mais preciso. Desse modo, indagações e aflições do sujeito são meramente suprimidas em diagnósticos nebulosos que se baseiam apenas na rápida avaliação de sintomas ––– apresentados em sacros manuais e códigos sumamente técnicos ––– que estão manifestos no paciente.

Ao folhear um catatau de farmacologia de Goodman, edição de 1967,  encontrei ali já um alerta ao uso impreciso de psicotrópicos que surgiram na década de 50 do século passado.

Agora parto de outro ponto: a concepção de sujeito ( do latim subjectus oriundo do verbo subicere, “ colocar sob, abaixo de”). É curioso observar que sujeito ––– conceito importante na teoria lacaniana –– seria algo que está abaixo, mas  de quê? Além do comportamento manifesto, que vai da ação até as hesitações do indivíduo, há a singularidade de cada um que está colocada sob as convenções, sob a persona comportamental. Inegável  que a singularidade das paixões dificilmente é tolerada quando vem a lume, fica “sob o sol”––– saber de si** pode ser uma empresa árdua. Talvez, esteja aí um ponto fraco explorado pelos produtores dos modernos psicofármacos. O remédio, como droga, obviamente alivia e entorpece ––– e isso em dados momentos se faz necessário diante das agruras da vida ––– porém o uso maciço tende a soterrar, ainda mais, o sujeito, sua história e sua paixão. Então, poderia indagar o mais raivoso farisaísmo: todo mundo tem que fazer psicanálise ou psicoterapia para ficar em paz com suas questões? A psicanálise não se propõe a ser saída derradeira para os percalços da existência –– nem advoga em posição contrária à de outras abordagens terapêuticas, ––– apenas acolhe sujeitos que a ela tragam alguma questão a respeito de suas vidas, buscando algum saber sobre si que permanece soterrado, mas que incomoda inequivocamente. Indepentente dos caminhos psicoterápicos, há caminhos místicos, artísticos, fruição produtiva, arte japonesa do origami etc.

 Um sujeito, quando busca atendimento analítico, geralmente apresenta o fato de que seus subterfúgios ––– que mascaram o que não é suportável em si –– não estão mais sendo eficientes; o incômodo subjetivo (subjectus) emerge a contragosto do sujeito, revelando a fragilidade da medicação modernosa que é comumente superestimada por alguns asseclas da psiquiatria biológica.

Os quadros depressivos tornaram-se termos vulgarizados há um certo tempo; atualmente creio que a coqueluche ainda é o termo bipolar. As pessoas plasmam o que sentem ao que encontram em superficiais descrições que abundam na internet e desbundam os leigos que se indentificam com inúmeras patologias. Ante os impasses da existência e da convivência, comum se tornou levantar a bandeira da depressão e se refestelar no uso de antidepressivos. Porém, vale remarcar que o afeto da tristeza difere da depressão e  da melancolia ( depressão profunda), sendo, obviamente, natural senti-o durante a desgastante luta pela convivência.

A sociedade, em seu esplêndido desenvolvimento, medica a criança ansiosa como doente sem que ela manifeste –– em seu discurso balbuciante ou articulado –– o que a incomoda em sua constelação familiar; o sujeito dividido em suas aspirações passa a se sentir deslocado perante os ditames higienistas da nova era do bem-estar total, na qual condutas que lhes sejam desviantes devem se submeter ao crivo comportamental, dietético, medicamentoso etc.





* Crônica publicada, no Cinform Online, em 25 de agosto de 2011.

** Na psicanálise, há diferença entre conhecimento e saber de si (gaio saber). Por exemplo, possuir conhecimento técnico, livresco, não significa ter algum saber a respeito do que se é, do que se sente etc.

Inutilidades provincianas *



          Ante o sonhador inveterado –– que vive o desejo de realizar aquilo que almeja –– não  raramente adotamos um certo esgar de desprezo quando ele não nos apresenta um sonho, um ideal, utilitarista e bem acomodado. Aquele que busca uma profissão que, aparentemente, pode ser pouco rentável é adornado com adjetivos desdenhosos; curiosamente esta ação depreciativa, aplicada ao sonho alheio, pode ser mais facilmente delineada na mesquinhez da vida provinciana.

          Não se trata, neste momento, do sonho como a produção onírica realizada durante o sono –– como psicanalista sou forçado a frisar isso ––senão das aspirações e da vocação que estão plasmadas ao desejo. Caso não houvesse o atrevimento dos pioneiros seria difícil imaginar a arte e especialmente o cinema que tanto demanda em recursos humanos e pecuniários. Na próspera vida provinciana, em sua imbatível qualidade de vida, tudo o que não for necessariamente produtivo e rentável tem ares de diletantismo, não sendo à toa que a produção artística local sofre seus percalços.

          Falando de cinema, o filme Fitzcarraldo, de Werner Herzog, é longo e pode chegar a ser tedioso para alguns, porém esse clássico tem um enredo arrebatador. A película trata do personagem homônimo, Fitzcarraldo, um sonhador inveterado que pretende construir um teatro de ópera, uma casa de ópera, no meio da Amazônia peruana;  o estrangeiro Fitzcarraldo já viera de outras empreitadas malogradas, mas sua paixão pela ópera e pelo legendário tenor Caruso o entorpecem a ponto de ele mover tudo para concretizar seu desejo. Fitzcarraldo, em seu sonho tresloucado, enfrenta a rude elite provinciana da borracha –– abastada, porém inculta e vulgar ––  que desdenha das pretensões inoportunas do nosso anti-herói; reservando-lhe, ainda, a pecha de “ O conquistador do inútil”. Decerto que os empreendimentos do protagonista são descabidos para a realidade e a mentalidade encontradas na abissal floresta peruana, contudo a chama que anima o lunático personagem é a de grandes realizações, a do pionerismo que embora seja insano, aos olhos do presente, depois poderá vir a ser considerado tradição ou caráter precursor.

          Sem o ímpeto descabido de alguns visionários como teríamos concretizado as viagens espaciais e o cinema ? Em uma provinciana capital, que se orgulha  de seu progresso e expansão, os sonhadores visionários são escassos; fagulhas que devem resistir à gelida consideração provinciana quanto ao que é artístico ou inventivo,  mas sem utilidade pragmática e rentabilidade imediata. Claro, que os provincianos julgam necessário uma regular e ululante atenção à produção artística.  Aos filhos da boa classe média, era quase que impelida a escolha  entre duas ou três profissões consideradas mais promissoras e seguras; as carreiras profissionais restantes pareciam reservadas a aventureiros dignos de um safári e da descida ao limbo das aspirações burguesas. Sabemos que nossa cultura não preza a vocação e seu chamado, senão caso essa esteja adequada ao sonho da classe média –– se esta coincidência transcendental ocorre temos um indivíduo premiado pelo destino. Ademais, restará a frustração vocacional bem remunerada e assegurada, mas com o poder transformador do talento soterrado…

          Verdade que em nossas plagas vemos pouco da criatividade inventiva que produz algo novo; talvez porque  a vocação e o ímpeto visionário sucumbam perante a mesquinhez do imediatismo e  a ausência de ideais humanísticos em nossa cultura. Outro filme, o premiado Pequena Miss sunshine,  evoca também a questão da importância da realização dos sonhos mesmo que esses se mostrem momentâneos e fugazes como são os da pequena Olive que deseja vencer um concurso de beleza infantil. Evidente que há ali uma sátira mordaz aos  concursos de beleza infantil atuais que querem apresentar as crianças transformadas em pequenos adultos bizarros, contudo o que há de tocante nesta película reside no fato de vermos uma família em crise –– cujos os membros seriam cruelmente chamados, pelos americanos, de losers –– fazer o possível para viabilizar o sonho de Olive.

O que parece mais comovente e encantador nesse filme é o respeito pelo sonho alheio, pelo sonho de uma criança; mesmo que o sonho infantil, sua fantasia, seja tragado pela voraz ordem consumista moderna, sua essência continuará a pulsar na alegria e na celebração da inventividade infantil  –– talvez esteja aí o segredo da Pequena miss sunshine.

Fitzcarraldo  luta e acredita, de modo infantil, nos seus sonhos tanto que desconsidera os entraves e limitações da realidade. Bukowski, o escritor americano beberrão, dizia que nada era mais chato do que a realidade; possivelmente se referia  aos entraves que ela nos apresenta diante do que desejamos. Freud, ao falar  da atividade onírica durante o sono, asseverou que o sonho era a via régia para a realização do desejo, pois quando sonhamos, durante o sono, a realidade é amplamente deformada a favor do desejo inconsciente.

No entanto, a realidade nunca foi um empecilho aos visionários; Fitzcarraldo aposta nisso e materializa, a seu modo, o sonho de levar a ópera aos confins da Amazônia peruana, superando a soberba da elite provinciana que apenas considerava êxito tudo o que gerasse lucro material e poder. Difícil entender, mas parece que não existe “ escolha” para Fitzcarraldo, pois  o seu desejo flui –– rebenta de qualquer maneira. Considerar desenvolvimento e progresso em bases meramente monetárias, desprezando o avanço social, educacional e humanístico, é uma forma de sustentar a mentalidade de mero exportador de bananas.  

 

*Crônica publicada no Cinform online em dezembro de 2011.