Um santo parricida


                       
                   A lenda de um santo parricida pode evocar as mais tolas e óbvias curiosidades de um psicanalista; tema sublime para cândidas especulações ensaísticas --- belas frases, dissimuladas sob leve jocosidade, findam por atingir objetivo fugaz.  Diletantismo que se deleita ante um tema interessante, pensando assim alçar seu voo acima do horizonte mesquinho, comum,  para a ignorância que habita os rincões tropicais. Afinal belas frases e citações eruditas, ou simplesmente obscuras, podem ser usadas a torto e a direito imprimindo certa garbosidade estilística ao diminuto ensaio. A verbosidade  vaidosa seria o pecado venial, pecadilho,  da falta de fibra argumentativa; claro que boas ideias também se apresentam de modo galante na pena dos verdadeiros escritores, mas não se restringem a eles porque há poesia também na rudeza. Importante  deve ser o sopro vívido que deve animar toda pesquisa resultando em entusiasmo produtivo que posteriormente deve ser  “deixado”, obrado, através de algum meio.
                        
               A exultação alcançada durante o processo de criação, de expiação, certamente não passará de um frêmito de júbilo que logo em seguida será substituído pelo objeto obrado. A “suave narcose” que era a designação de Freud para a fruição artística decerto não encerra em si a consideração da produção artística --- que para alguns artistas é um processo gozoso  e penitente cheio de delongas e hesitações ---  que mais uma vez não deve ser reduzida à mera fruição. Burilar, aperfeiçoar até obrar a produção comporta uma leve penitência melhor assimilada em termos de uma comichão que revolve o artista.
                       
              Em “ A gênese do Doutor Fausto” Thomas Mann legou ao leitor seu caderno de anotações e impressões políticas (sobre o período da Segunda Guerra) que serviu de base para a composição de “Doutor Fausto”, longo romance que retrata a trajetória de um compositor erudito que realiza  um pacto com o diabo para criar uma grande obra. Em seu processo criativo  de  Carlota em Weimar --- visitado por uma inflamação do nervo ciático --- o autor declara ter sentido algo de uma unio mystica com o Criador; e que poderia ser apreendido na ordem um pequeno transe. Não obstante, seria por demais arriscado e vão aproximar a criação artística da mística dos santos, beatos e iluminados, pois são percursos diferentes. Melhor que está digressão esteja associada à questão de Flaubert ter escrito seus “ Três contos” inspirado por certa fé, ou unio mystica, que dificilmente pode ser sondada pelo conhecimento objetivo senão por um saber singular; porém esses contos tratam, em ordem de apresentação no livro, de uma beata abnegada, da lenda de São Julião hospitaleiro e do episódio da decapitação de São João Batista a mando de Herodes Antipas. Biógrafos de Flaubert acreditam que esses contos, escritos na velhice do autor, foram gerados em momentos de grande dificuldade em sua vida.
                       
                 Fato é que a legenda de São  Julião hospitaleiro, --- o santo parricida conhecido na Idade Média como Oedipus christianus ---  foi tema de um conto de Gustave Flaubert em seu famoso “ tríptico”. Na hagiografia de São Julião ou Juliano fica patente que ele matou pai e mãe “sem saber”, embora antes de cometer o parricídio ele houvesse ouvido o funesto vaticínio através de um animal que caçava. Após isso o jovem Julião tenta se esquivar  ao cumprimento de seu lúgubre destino e foge da casa paterna para se destacar como caçador e guerreiro.  Conforme a Legenda áurea de Jacopo de Varazze --- grande compilação medieval da vida de santos ---  Juliano, ao ser senhor em um castelo, sai para mais uma caçada; nesse ínterim seus pais, que há muitos anos vagavam em sua busca, chegaram até o castelo em que Julião residia com sua nobre esposa; e, ao se apresentarem à esposa de Julião, ela os aceita e os conduz até os aposentos do casal para um merecido repouso que serviria de espera até o retorno do nobre caçador.  No entanto, Julião,ao regressar, encontra o casal paterno deitado em seu leito o que o leva a julgar que sua senhora estaria cometendo adultério; em um rompante terrível Julião assassina seus pais. Após o ato parricida encontra a esposa fora de seus aposentos e ela lhe revela que seus pais ali o aguardavam; tomado de supremo horror declara que o bizarro vaticínio da presa caçada se cumpriu. A partir desses acontecimentos,  Julião larga a vida mundana, profana, e segue  com sua companheira até as margens de um grande rio para fundar um hospital para os pobres e ser barqueiro ajudando na travessia do rio. Por fim, um leproso clama por seus cuidados e Julião os empreende com fervorosa dedicação; o zeloso cuidado seria o prenúncio de sua divina redenção, pois o leproso era um anjo que comunicou a Julião que Deus aceitou sua sincera penitência --- deste modo é que a lenda é contada.
                      

                                             Detalhe do vitral de São Julião na Catedral de Rouen, França
                   
               Ao modo de Édipo de Sófocles Julião tenta fugir ao seu fatídico destino, porém o santo não comete incesto; há também diferenças entre a lenda do santo e a de Édipo, mas o que se preserva, basicamente, é o cumprimento inexorável do destino, da Moira para os gregos.
                       
          Devo me abster de tentar didaticamente explicar o que seria o “ Complexo de Édipo”, segundo Freud,  neste ensaio nanico; quem mais informações quiser busque fontes ou o oceano da internet. Apenas vale remarcar que esse “complexo” trata da estruturação psíquica do sujeito neurótico em relação a quem ocupou a função parental para ele. Ademais, deixo aos sexistas e aos leitores superficais da obra freudiana o livre julgamento. No entanto, as questões de gênero, como o transexualismo, desafiam o ligeiro entendimento psicopatológico e a consideração acerca do que seria a “ correta” diferenciação sexual entre macho e fêmea. A estruturação da “escolha” sexual está fundada na constituição subjetiva do desejo e não em uma pura determinação genética de cunho moralizante; até em casos de hermafroditismo( pseudo-hermafroditismo) a constituição subjetiva do sujeito merece ser observada além do aspecto congênito --- ao menos este deve ser o proceder do analista para não cair na esparrela do furor sanandi alertado por Freud. Mais frutífero ao psicanalista é abandonar a presunção de julgar possuir uma suposta “escuta precisa” e aceitar, sem embargo, a possibilidade de se surpreender clinicamente. O que não dispensa a séria diagnose estrutural que guia a condução do tratamento conforme Lacan legou de modo pontual. 

                              Painel " Deuses modernos" (1934) de José Clemente Orozco

A versão de Flaubert foi inspirada num vitral encontrado em uma igreja na cidade de Rouen; esse vitral, em uma sequência de imagens, narra a trajetória de vida e de ascensão espiritual de São Julião hospitaleiro. No entanto, a versão romanceada do escritor francês tem matizes próprios além da simples hagiografia, pois Flaubert parece revelar  o que deve ser a convulsão pulsional (superexcitação ?) ante a queda aos abismos da abjeção; as iniquidades de Julião, antes de ascensionar, com as criaturas que aniquilava sem pestanejar, lhe traziam o semblante da realização de um imperativo; ou talvez o ímpeto de negar seu destino divino. Em suma são interpretações interessantes, mas que sempre pedem recato, precaução.


No entanto, o microcosmo psíquico do neurótico é estruturado a partir de um “parricídio” simbólico; através do ordenamento da lei em sua subjetividade. Razão que difere os fenômenos da neurose de uma psicose.  

A  maldade se esgota e mostra seu caminho de redenção para os santos e beatos. Após o ápice de sua perversidade, buscado no parricídio vaticinado,  Julião sai em penitência pelo seu destino amaldiçoado para, por fim, ter sua redenção sublime.