Sim, porque não é só estar nos templos, ou só ocupar as tribunas, ou só escravizar-se aos negócios, por mais necessários que sejam; há também horas de descanso para que o irrequieto espírito possa repousar. Miguel de Cervantes, Novelas exemplares
O
apelo coletivo por uma punição apocalíptica sempre rondou a civilização. O
famoso calendário maia, por exemplo, animou,
neste começo de século, a inquietação pelo fim, pelo ocaso derradeiro da
humanidade que apenas corrói o planeta e seus recursos –– a mais árdua
redenção coletiva é deslocada para uma punição apocalíptica. Ademais, a possibilidade de um fim escatológico para a
humanidade em nada pode contribuir para quem não tem uma rota de fuga, pois
ainda é impossível habitar outro planeta. É de se perguntar caso não seria
possível também, para as inúmeras profecias de fim dos tempos, supor um sentido
figurado e alegórico no qual o sujeito inquirisse o eixo de seu comodismo
existencial? Do contrário, restarão sobretudo o descartável efeito catártico
dos filmes de catástrofe hollywoodianos.
Embora
as doutrinas escatológicas possam começar a cumprir o objetivo vaticinado através de uma terceira
e terrível guerra mundial, ainda resta
subjacente, ao anseio pelo fim, a necessidade de uma punição coletiva
derradeira figurada pelo apocalipse de ordem divinal. De pronto, não
encontramos o pedantismo de alguém que indague a real relevância de uma
preocupação se o fim for inadiável, porque se for inevitável não deveria deixar
o peito opresso em um misto de pavor e anseio. Pavor pois a morte é o
determinismo mais temido; e anseio porque se assemelha ao frêmito pela satisfação
ignóbil obtida com o possível extermínio da humanidade destruidora.
Na
Bíblia, o Livro do Apocalipse, a revelação, de São João é iniciado comunicando que o fim dos tempos
não tardaria a chegar, todavia até o término de seu comunicado escatológico clama
por uma mudança de atitude dos cristãos para que estejam preparados para o
colapso final. Há decerto o pedido de uma mudança subjetiva, existencial, não
obstante colocada nos termos de salvação da alma; porém importa expandir o
sentido da profecia –– que tende a ser considerada somente em uma faceta de
destruição e punição coletiva –– para o de uma exigência interior de
transformação do indivíduo imiscuída ao apelo religioso.
Maremotos
(tsunamis), meteoros apresentam uma
probabilidade real de acontecer, mas carecem até o momento de um caráter
catastrófico mundial, de uma hecatombe planetária, que justifique as profecias.
Os indivíduos que anelam o fim sumamente punitivo dificilmente observam que os
avanços da humanidade são progressivos; para eles todo pensamento de
progresso resvala em um pegajoso otimismo –– consideram que a civilização nunca
abandonará seu estado crepuscular. Não reconhecem nenhum avanço civilizatório
nos últimos 200 anos, porém frisam, previamente, que há um aumento da violência
e da destruição planetária esquecendo que a interligação global de comunicação
permite se tomar ciência quase instantânea de desastres e conflitos em lugares
remotos. Outrossim, olvidam os interesses econômicos e geopolíticos na
disseminação de um estado de pavor e
temeridade que venha a justificar medidas de ação convenientes aos países
hegemônicos. O que antes levaria tempo para ser noticiado agora é sabido em um
átimo, –– destarte não significa que há uma incidência maior de crimes hediondos
que indique o sobrepujamento de uma bestialidade fruto dos tempos atuais.
Acreditam também que a tecnologia portátil, com suas telas multicoloridas,
causam o afastamento e a alienação das pessoas; o mal-estar ante a tecnologia é
um ponto a ser considerado, pois o desconforto ante as quinquilharias hightech ganha ares de um neoludismo , porém mais suave do que o
movimento ocorrido durante a revolução industrial, entre os séculos XVIII e XIX,
na Inglaterra. O ludismo foi um
movimento no qual se acreditava que as máquinas iriam tomar os postos de
trabalho dos operários e por este motivo deveriam ser destruídas.
"Os quatro cavaleiros do apocalipse" (1497-98) Albert Dürer
O
combalido discurso que anuncia o fim dos tempos recorre à argumentação de que o
tempo presente sempre é o zênite de uma crise moral da civilização crepuscular ––
por isso a barbárie estaria em paroxismo na geração atual. Para o fatalista convicto
nenhum avanço da tecnologia médica ou das garantias individuais em países
civilizados contaria nos últimos dois séculos. Evidente que muitos países são
explorados e se encontram tomados por guerras civis e miséria extrema; verdade
que outros regrediram ao conservadorismo anacrônico em seus costumes a ponto de
privar as mulheres de liberdade e de direitos civis, todavia difícil não
considerar o processo histórico das civilizações sem reviravoltas e involuções
que resultarão em uma síntese posterior –– há uma média que define e identifica,
mas não pode apreender o todo.
"As long as I hope my phantoms will vanish " (2008)
detalhe da escultura de Rachel Kneebone
detalhe da escultura de Rachel Kneebone
As
considerações de Freud em sua obra “O Mal-estar na civilização”, muito conhecida
pelo grande público, não primam pelo cândido otimismo civilizatório, também não
se furtam a demonstrar certo ranço perante os avanços que pressagiavam a segunda guerra mundial. Talvez Freud
lamentasse mais os atavismos da humanidade que terminariam por levá-la a um retorno
cíclico da selvageria –– o narcisismo desmesurado da civilização tecnológica
atrairia o caos. O indivíduo narcisista que mais vive a apreensão do porvir, do
que qualquer busca subjetiva em si, julga que sua vida (a época na qual ela
transcorre) representa o ápice e o subsequente prenúncio do colapso do universo
de modo que suas questões aflitivas são deslocadas para movimentos externos
somente; destarte é mais cômodo culpar o vizinho, a tecnologia, a rusticidade das
ações humanas. No entanto, continuará sendo um sujeito siderado que espera uma
resposta que pode advir através de uma solução crepuscular e apocalíptica na
qual possa depositar seu comodismo.
_____________________________________________________
* Ensaio também publicado em 8 de junho de 2014 no Jornal da Cidade na coluna "Sociedade no divã".