O Fim interior *

                                                                                    


                               Sim, porque não é só estar nos templos, ou só                                                            ocupar as tribunas, ou só escravizar-se aos negócios, por                                                       mais necessários que sejam; há também horas de descanso                                                    para que o irrequieto espírito possa repousar.                                                                                      Miguel de Cervantes, Novelas exemplares  

              
   
O apelo coletivo por uma punição apocalíptica sempre rondou a civilização. O famoso calendário maia, por exemplo, animou, neste começo de século, a inquietação pelo fim, pelo ocaso derradeiro da humanidade que apenas corrói o planeta e seus recursos –– a mais árdua redenção coletiva é deslocada para uma punição apocalíptica. Ademais,  a possibilidade de um fim escatológico para a humanidade em nada pode contribuir para quem não tem uma rota de fuga, pois ainda é impossível habitar outro planeta. É de se perguntar caso não seria possível também, para as inúmeras profecias de fim dos tempos, supor um sentido figurado e alegórico no qual o sujeito inquirisse o eixo de seu comodismo existencial? Do contrário, restarão sobretudo o descartável efeito catártico dos filmes de catástrofe hollywoodianos.

Embora as doutrinas escatológicas possam começar a cumprir  o objetivo vaticinado através de uma terceira e terrível guerra mundial, ainda  resta subjacente, ao anseio pelo fim, a necessidade de uma punição coletiva derradeira figurada pelo apocalipse de ordem divinal. De pronto, não encontramos o pedantismo de alguém que indague a real relevância de uma preocupação se o fim for inadiável, porque se for inevitável não deveria deixar o peito opresso em um misto de pavor e anseio. Pavor pois a morte é o determinismo mais temido; e anseio porque se assemelha ao frêmito pela satisfação ignóbil obtida com o possível extermínio da humanidade destruidora. 

Na Bíblia, o Livro do Apocalipse, a revelação, de São João é iniciado comunicando que o fim dos tempos não tardaria a chegar, todavia até o término de seu comunicado escatológico clama por uma mudança de atitude dos cristãos para que estejam preparados para o colapso final. Há decerto o pedido de uma mudança subjetiva, existencial, não obstante colocada nos termos de salvação da alma; porém importa expandir o sentido da profecia –– que tende a ser considerada somente em uma faceta de destruição e punição coletiva –– para o de uma exigência interior de transformação do indivíduo imiscuída ao apelo religioso.

Maremotos (tsunamis), meteoros apresentam uma probabilidade real de acontecer, mas carecem até o momento de um caráter catastrófico mundial, de uma hecatombe planetária, que justifique as profecias. Os indivíduos que anelam o fim sumamente punitivo dificilmente observam que os avanços da humanidade são progressivos; para eles todo pensamento de progresso resvala em um pegajoso otimismo –– consideram que a civilização nunca abandonará seu estado crepuscular. Não reconhecem nenhum avanço civilizatório nos últimos 200 anos, porém frisam, previamente, que há um aumento da violência e da destruição planetária esquecendo que a interligação global de comunicação permite se tomar ciência quase instantânea de desastres e conflitos em lugares remotos. Outrossim, olvidam os interesses econômicos e geopolíticos na disseminação de  um estado de pavor e temeridade que venha a justificar medidas de ação convenientes aos países hegemônicos. O que antes levaria tempo para ser noticiado agora é sabido em um átimo, –– destarte não significa que há uma incidência maior de crimes hediondos que indique o sobrepujamento de uma bestialidade fruto dos tempos atuais. Acreditam também que a tecnologia portátil, com suas telas multicoloridas, causam o afastamento e a alienação das pessoas; o mal-estar ante a tecnologia é um ponto a ser considerado, pois o desconforto ante as quinquilharias hightech ganha ares de um neoludismo , porém mais suave do que o movimento ocorrido durante a revolução industrial, entre os séculos XVIII e XIX, na Inglaterra. O ludismo foi um movimento no qual se acreditava que as máquinas iriam tomar os postos de trabalho dos operários e por este motivo deveriam ser destruídas.

"Os quatro cavaleiros do apocalipse" (1497-98)  Albert Dürer

O combalido discurso que anuncia o fim dos tempos recorre à argumentação de que o tempo presente sempre é o zênite de uma crise moral da civilização crepuscular ­­–– por isso a barbárie estaria em paroxismo na geração atual. Para o fatalista convicto nenhum avanço da tecnologia médica ou das garantias individuais em países civilizados contaria nos últimos dois séculos. Evidente que muitos países são explorados e se encontram tomados por guerras civis e miséria extrema; verdade que outros regrediram ao conservadorismo anacrônico em seus costumes a ponto de privar as mulheres de liberdade e de direitos civis, todavia difícil não considerar o processo histórico das civilizações sem reviravoltas e involuções que resultarão em uma síntese posterior –– há uma média que define e identifica, mas não pode apreender o todo.


                                    "As long as I hope my phantoms will vanish " (2008)
                                                  detalhe da escultura de  Rachel Kneebone 
                                              
As considerações de Freud em sua obra “O Mal-estar na civilização”, muito conhecida pelo grande público, não primam pelo cândido otimismo civilizatório, também não se furtam a demonstrar certo ranço perante os avanços que pressagiavam  a segunda guerra mundial. Talvez Freud lamentasse mais os atavismos da humanidade que terminariam por levá-la a um retorno cíclico da selvageria  –– o narcisismo desmesurado da civilização tecnológica atrairia o caos. O indivíduo narcisista que mais vive a apreensão do porvir, do que qualquer busca subjetiva em si, julga que sua vida (a época na qual ela transcorre) representa o ápice e o subsequente prenúncio do colapso do universo de modo que suas questões aflitivas são deslocadas para movimentos externos somente; destarte é mais cômodo culpar o vizinho, a tecnologia, a rusticidade das ações humanas. No entanto, continuará sendo um sujeito siderado que espera uma resposta que pode advir através de uma solução crepuscular e apocalíptica na qual possa depositar seu comodismo. 

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* Ensaio também publicado em 8 de junho de 2014 no Jornal da Cidade na coluna "Sociedade no divã".

O demoníaco em Stevenson e em Freud


Sonhando, imaginando, Stevenson foi o último dos românticos; escrevendo foi o último clássico da prosa inglesa.
Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental

Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos
Nietzsche

            O popular clássico de Robert Louis Stevenson  sempre esteve além dos limites de uma simples historieta de terror; tornou-se perene obra que comporta variegadas leituras acerca da subjetividade e da divisão do homem entre a questão do bem e do mal . A incompatibilidade entre os impulsos, desejos, que habitam a alma é apresentada através da transformação de uma personagem;  não obstante a “mutação” seja precipitada por uma substância química o que emerge são os impulsos soterrados do Dr. Henry Jekyll.

Obra importante da literatura fantástica --- que tem como escopo a exposição do embate provocado pela dicotomia entre bem e mal que habita a consciência de Dr.  Henry Jekyll --- O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde( The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde) está além da categoria de novela de  suspense e terror sendo uma alegoria sobre a presença  de sentimentos contraditórios no imo da criatura humana. Todavia, “ não há menor dúvida de que o pequeno romance de Stevenson, escrito em 1885, é um dos ancestrais das modernas histórias de mistério” ressalta o escritor russo Vladimir Nabokov em um ensaio sobre este romance.  O pérfido Edward Hyde não deve ser considerado como pústula moral produzida pela ingestão de uma “poção mágica”, senão no plano das aspirações reprimidas do consciencioso e polido Dr. Jekyll.

Possível ventilar a hipótese cuja obra supracitada possa indicar e antecipar a dissolução dos limites morais rígidos entre o bem e o mal no comportamento humano; desse modo  a obra  desenharia a compreensão  da natureza humana através da mescla de impulsos contraditórios. Que delimitação entre bem e mal fosse cara aos costumes vitorianos --- vale pontuar que a obra publicada em 1886 é ambientada em Londres --- e ao ímpeto religioso, carola, que visava a demonizar a sexualidade etc,  não é fato que surpreenda; todavia a novela  gótica de Stevenson parece prefigurar a ruptura da ideia de uma polarização tão precisa dos afetos de amor e ódio, bem e mal etc que terá  evidência cabal nas obras de Nietzsche e Freud.
  
"Combate entre o carnaval e a quaresma" (1559), Pieter Bruegel( O velho)


Em Uma neurose do século XVII envolvendo o demônio(1923), Freud destacou que “ não devemos nos surpreender se as neuroses de tempos passados aparecerem sob roupagem demonológica, enquanto as de nossa pouco psicológica época atual tomam aspecto hipocondríaco, disfarçadas de enfermidades orgânicas”. Decerto que Freud não trata de questões da mística com o acento que Lacan as abordará, especialmente, em seu seminário XX; porém Freud revela que a figura do demônio era uma instância que representava o proibido, o pecaminoso, no discurso social fruto da força repressora da religião. Desse modo, Freud assevera: “Os demônios são, para nós, desejos maus, rejeitados; são derivados de impulsos pulsionais repudiados, reprimidos. Nós apenas recusamos a projeção dessas entidades psíquicas no mundo externo, que a Idade Média realizava; entendemos que se originam na vida interior dos doentes, onde habitam”. Neste artigo, Freud investiga a suposta possessão do pintor Christoph Haitzmann como uma neurose de matiz religioso, e não de ordem mística.

O tema do duplo, também, é evocado em O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr Hyde embora evitando a concretude fantástica apresentada, por exemplo, em  O duplo (1846) de Dostoiévski e em  William Wilson (1839) de Edgar  Allan Poe. Nessas obras o aparecimento do duplo é manifesto na encarnação real de uma personagem idêntica ao protagonista apresentando, de maneira especular, aspectos dissonantes da personalidade do protagonista. Dr Jekyll se refere a Hyde como seu duplo, mas Hyde se apresenta mediante uma transformação “química” que altera a fisionomia de Jekyll, não havendo a característica do duplo especular. O  autor parece utilizar  um calculado nível de estranheza  para que sua estória  possa ser julgada como plausível no quotidiano. Outrossim a caracterização do fantástico permanece decerto delimitada, fugindo-se à suspensão marcante da realidade que ocorre no conto de Poe e na novela de Dostoiévski. O tema do duplo encontrará no conto Markheim(1885), de Stevenson, uma expressão especular que se aproximaria mais da forma escolhida por Poe e Dostoiévski.
"Retrato do Bufão Don Juan de Áustria"(1650), Velázquez

 Porém a questão do duplo não é o problema fulcral delineado neste ensaio, mas sim o intuito de verificar a hipótese de O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde ser considerado como um retrato que prefigurou a dissolução da delimitação estanque entre bem e mal tanto na subjetividade quanto nas relações sociais--- prefiguração  do que seria posteriormente  apontado pela filosofia, psicologia e ciências afins a partir do final do século XIX e meados do XX.

Relevante remarcar que O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde publicado em 1886 --- mesmo ano de  Além do bem e do mal  de Nietzsche e alguns anos antes das descobertas freudianas ---,  situa a questão do bem e do mal, que outrora tivera um caráter de aporia moral, no imo do sujeito humano sendo a personagem, sob a forma de Hyde, a encarnação de um ser maligno e inescrupuloso que irrompe após a ingestão de uma “poção química”. Também a novela apresenta o ser maligno, Mr. Hyde, como  entidade  do mal, mas que é parte da personalidade de Dr. Jekyll; parte, componente a que  Jekyll não pretende se furtar a dar vazão, pois sob a forma de Hyde encontra livre curso para executar vilanias e desejos inconfessáveis aos olhos da moral vitoriana do século XIX.  Ao tentar se afastar da transformação o protagonista comenta, em terceira pessoa: “ Jekyll sofreria dolorosamente no fogo  da abstinência”; e depois em primeira pessoa: “ comecei a me torturar com agonias e  anseios, como se Hyde lutasse por liberdade”. E ainda: “ Meu demônio passou muito tempo enjaulado e, quando saiu, estava rugindo”. Desta maneira a personagem identifica o dilema do mal e de seu  demônio como um anseio que subjazia à sua consciência e vem à tona como que algo ao seu talante que lhe é cabido; não há a designação de uma força maligna sobrenatural que venha a se materializar  externamente e dirigir as ações do Dr. Jekyll, mas seus próprios impulsos e desejos soterrados que sobretudo através da persona de Hyde atingem seu ápice expressivo.

Em suas diatribes contra a filosofia e a moral, Nietzsche em Além do bem e do mal assevera que “ o homem não poderia viver --- que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida, negar a vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo coloca, apenas por isso, além do bem e do mal”. O martelo demolidor de sua filosofia ataca, também, a concepção moral que precisava a sexualidade e os afetos contraditórios em um patamar  demoníaco e ultrajante.

Nessa famosa novela de Stevenson não se encontra uma personificação do demoníaco como força externa que poderia  influenciar o austero e cordato Dr. Jekyll --- o mal não está alhures, senão dormente, subjacente à consciência do protagonista. O enredo é apresentado sob o formato entre estranho e o fantástico,  sem desembocar no sobrenatural, porque a experiência é descrita como fato excepcional, mas que poderia ter ocorrido. Tudo isso sem que se espanque a dúvida, a hesitação que imprime um sopro de suspense à estória.

Roger Caillois em No coração do fantástico  assevera como “  pedra de toque do fantástico a irredutível impressão de estranheza”. O estranho descrito por Freud em seu artigo homônimo de 1919 não deve, decerto, ser aplicado irrestritamente ao estranho na literatura; seria uma vã pretensão aplicar o aparato teórico da psicanálise ao texto literário visando a obter uma interpretação derradeira, --- uma hermenêutica das paixões identificadas no texto literário. No entanto, Freud, em seu artigo supracitado, sustenta suas considerações teóricas  acerca do sentimento de estranheza,  em um conto, do escritor alemão E. T. A. Hoffmann,  denominado O homem da areia.  Escolha que Freud não deve ter feito ao acaso, pois Hoffmann escreveu contos e um romance, como Os elixires do diabo,  sob o gênero do fantástico e do estranho.

Freud sempre ressaltou o poder de  a arte prefigurar suas descobertas e com a obra de Stevenson, também, parece ser possível  identificar o mesmo poder.


O furúnculo da ignorância*

A sabedoria não se transmite, é preciso que gente mesmo a descubra depois de uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira ver as coisas.
                                                                                        Proust,  À sombra das raparigas em flor




   Difícil alegar desconhecimento no moderno mundo da informação e do conhecimento técnico. As pessoas estão atoladas de informação; a acessibilidade e a riqueza de fontes informativas representam um mar revolto que arrasta opiniões ligeiras de indivíduos pouco afeitos à contestação. E o conhecimento técnico  ocupou o lugar de oráculo da saúde, do comportamento e dos mistérios do universo; quase tudo no corpo e fora dele deve ser decisivamente remediado ou explicado pelo conhecimento.

   Ramos do conhecimento que sejam considerados dissonantes, espúrios, pelo conhecimento científico oficial –– e, nesse sentido, poderíamos citar a psicanálise e a homeopatia –– são tidos como subjetivistas e sem resultados observáveis e mensuráveis. Há, sem embargo, interesses farmacológicos altamente rentáveis e um ímpeto de dissecar a alma humana como se fosse mera máquina de vísceras que produz um comportamento que pode ser puramente determinado. No entanto, os sujeitos continuam angustiados embora entupidos de psicotrópicos, barbitúricos, e em plena ignorância de seu ser; suas emoções que –– pelo ímpeto médico –– deveriam ser  dissolvidas, por esses medicamentos, persistem, porém, na surdina causando incômodo subjetivo . Além do bálsamo das medicações para a alma há, também, o ideal de felicidade e prosperidade encarnado na busca frenética por sucesso,  por bugigangas high tech, por medidas para um corpo atlético etc. De pronto, temos sujeitos que ignoram qualquer saber de si, vivendo tomados por suas compulsões, medos e por certo comodismo existencial –– aqui se define o homem moderno: um néscio bem informado.

O psicanalista francês Jacques Lacan, quanto a busca do sujeito por uma análise, dizia: “Mas todos sabem que aí não encorajo ninguém, ninguém cujo desejo não esteja decidido”. Isso não significa que a análise seja elitista ou coisa intelectualizada, mas que a análise pede certo engajamento do paciente e do analista também, pois mergulhar em si é tarefa dolorosa, furuncular. Determinada vez uma paciente –– em seu processo de análise, atravessando suas dores e  proferindo injúrias ao seu maridor traidor –– desvelou seu próprio desejo inconsciente na trama que produziu a traição de seu amado marido; a paciente reconheceu, por um certo saber de seus estados inconscientes, sua responsabilidade nos impasses de seu casamento –– reconhecimento apaziguador para a paciente.

   A ignorância, como paixão da alma, é a recusa quanto ao saber de si e aos mistérios da vida. Recurso humano; paixão da ordem da cólera e da inveja, é a ignorância –– no plano da subjetividade –– o obstáculo que o sujeito se aferra para evitar o doloroso percurso em busca de um saber de si; tal como tirar um sapato apertado ato no qual o alívio será precedido pela dor de retirá-lo; ou o furúnculo que o espremer dolorido proporcionará um posterior relaxamento prazeroso. Assim, qualquer busca interior é inicialmente insuportável e estranha, mas se tornará prazerosa e apaziguadora ao se avançar o processo. O mundo esplêndido moderno  se devota a estimular, sobretudo, os indivíduos eufóricos, consumistas e néscios que a sujeitos engajados  em um percurso destoante do consumo excessivo, buscando caminhos de saber interior e da vida por vias analíticas, místicas (espirituais), artísticas etc. Os caminhos são diversos e não podem ser transmitidos como em uma palestra de auto-ajuda, todavia não significa que fazer psicanálise seja o caminho aqui a ser aconselhado ou que ela deve ser adotada como  medida profilática.  

                                                  " Hamlet e Horácio no cemitério"(1839) Eugène Delacroix

   A concepção de ignorância, como paixão d’ alma, difere da socrática que a concebe sob a perspectiva de um passo primeiro para a sabedoria; a “ignorância filosófica” seria a predisposição –– pelo reconhecimento humilde da própria ignorância –– para a aquisição do saber. No entanto, aqui fica adotada a perspectiva da ignorância, como paixão, retomada pelo psicanalista Jacques Lacan  que pode ser encontrada em outras fontes. Recentemente, ao ler o evangelho apócrifo de Maria Madalena, ou Míriam de Mágdala, encontrei a concepção de ignorância como estado da alma, “clima”, da ordem da cólera e da cobiça. Importante frisar que os evangelhos apócrifos, diferentemente dos quatro evangelhos canônicos, não são abertamente aceitos pela Igreja Católica. Ademais, os fragmentos do evangelho apócrifo de Maria Madalena apontam a ignorância, a cobiça, a sabedoria vã e astuciosa( vaidade pelo conhecimento) etc como entraves para a elevação do espírito.

   Tarefa provavelmente improfícua, de consistência silfídica,  seria a de granjear  rigores de conceito para a ignorância através da forja de uma suposta erudição; melhor pensá-la talvez como um ponto de parada, de estagnação, ante os trilhos do insuportável quanto ao saber de si.

   Na psicanálise não se empreende um conhecimento científico dos próprios atos e comportamentos, senão no sentido da máxima de Proust –– colocada como epígrafe nesse ensaio ligeiro –– que indica a impossibilidade de uma transmissão da sabedoria, sendo ela um percurso único que parte de uma “ maneira de ver as coisas”. Nesse sentido, a psicanálise só pode ser mais um meio de saber para o sujeito que se encoraja a percorrer sua história, suas fantasias, seu desejo para, enfim, dissolver sua ignorância e seus medos. De modo aparentemente paradoxal o sujeito fica em paz com seus sapatos apertados.


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* Ensaio publicado também no portal NotíciasAju em 2013.

O linchamento do público

                                                O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro*

           
Os habitantes dos trópicos nunca foram assíduos adeptos da civilidade e do valores humanísticos, pois o ímpeto para a pândega e a leviandade sobrepuja qualquer ideal que exija mais esforço coletivo; não que o trabalho seja de somenos importância para o entendimento de progresso, todavia progresso é palavra que pesa no pendão nacional e na consciência mediana, sobretudo no sentido material bem mais do que humanístico e social. As palavras “Ordem e progresso” parecem afixadas para que se tornem valores arraigados, no entanto somente forjam um ideal volátil.  É sempre o inflado orgulho que impele a imagem de um rutilante desenvolvimento estrutural a guiar os mais doces sonhos de realização desta nação.

E por louvar avidamente o desenvolvimento estrutural e econômico, como saída derradeira para os problemas seculares do Brasil, a barbárie torna a se fazer presente a um passo de ser rotineira. Recentemente foi possível notar que os casos de linchamento se manifestaram com mais evidência --- ao menos as manchetes de alguns jornais desta capital demonstraram isso. De pronto,  ficou claro que a classe média e os populares estavam fazendo justiça com as próprias mãos, pois o estado estaria falhando na prevenção e punição de crimes etc. Munido de débeis argumentos qualquer ignorante mediano pode, sob o escudo de um grupo, praticar a justiça que lhe aprouver; o exemplo banal e corriqueiro é o das torcidas de futebol que, inflamadas por ideais pálidos, cometem atrocidades.

As torcidas podem ser relegadas ao conceito de tribos urbanas, diferentemente da meia dúzia de néscios embrutecidos que se reúnem, de supetão, para punir um ladrão ou um motorista imprudente que atropelou alguém. Evidente que não é fácil se furtar à indignação e à raiva por ter algo furtado, roubado mediante agressão,ou por haver presenciado o atropelamento de uma senhora a caminho da missa dominical. Porém, reverenciar um bando de tolos infelizes ­­­- que praticam a covarde justiça sumária contra marginais ---- é compactuar  com o atraso secular de uma sociedade tropical que sempre deixou a dever quanto à garantia dos direitos individuais e à urbanidade. No entanto, a parvoíce dos justiceiros ocasionais, que se aglutinam após a súbita captura do meliante, julga a ação necessária e que servirá de exemplo para outros delinquentes que, caso venham a roubar na vizinhança, receberão a justa paga pelo delito. O pior  é que os linchamentos não estão apenas ocorrendo nas zonas de miséria da periferia da capital do saroio, mas também nos bairros de classe média nos quais haveria a suposição de um maior esclarecimento. 

Óbvio que agir como cidadão e imobilizar o delinquente é um ato legítimo de defesa que contribui para a paz social, porém arrogar ao grupo de justiceiros ocasionais o direito a surrar e a trucidar o criminoso não pode ser tolerado e legitimado. Possível imaginar que a fúria por justiça começará a se estender a qualquer infrator que contrarie o pequeno grupo de vingadores ocasionais --- desse modo vizinhos incômodos e barulhentos poderão ser punidos e brigas entre casais poderão ser resolvidas através da celeridade de ação desses grupos. Em qualquer aspecto a ignorância e crueldade contribuem  sobremaneira para a sensação de insegurança e impunidade, pois os vingadores ocasionais passam a agir de forma semelhante ao gatuno, ao meliante, ---- nesta perspectiva a insegurança aumenta porque não se sabe com quem estará o açoite.

O pensamento unânime, unilateral, destina a ira contra quem o aborrece; o livre-pensamento deve ser suprimido quanto a temas polêmicos; apenas o veredicto prévio, conclusão categórica, de  determinados grupos intelectuais, políticos e étnicos, considerados legítimos, ganha relevo. A pensadora alemã Hannah Arendt pagou caro por ter acompanhado o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazista, e observado que Eichmann poderia ser considerado um burocrata medíocre e acéfalo, não um psicopata ---- apenas cumpria ordens e amava seu terrível Führer. Todavia a consideração de Arendt enfureceu a comunidade judaica que almejava condenar um monstro antes de enforcá-lo em 1962; porém a pensadora teve a visada de uma preponderante "banalidade do mal" no comportamento desse oficial nazista. Para Eichmann suas ações eram legítimas de acordo com o ideário nazista e o comando de Hitler. Hannah Arendt também apontou o colaboracionismo infame de alguns líderes judaicos com o processo do holocausto; ao delinear este ponto incômodo da história a pensadora foi duramente rechaçada pela ignorância furiosa do oprimido que havia então se tornado opressor.

                                Tela  de Jenner Augusto da série " Alagados" (1985)

Paradoxalmente o oprimido se transforma em opressor; o indivíduo mediano precisa porém do aval de alguma bandeira ou ideal fugidio para poder dar vazão ao seu odiozinho e polir seu narcisismo maculado pela  insolência do opositor; usando a força e estupidez eliminam o direito à defesa e à consideração das particularidades de cada ato.

O indivíduo moderno é um ser repleto de direitos; nada deve barrar sua livre expressão embora para isso seja necessário desmerecer a noção de civilidade e qualquer bom senso nas relações. O progresso tupiniquim é o do oco avanço estrutural e econômico que se confunde com o culto à imagem celebrado por  um povo que  encontra uma valiosa fruição em reality shows e grandiosidades esportivas e que outrossim desmerece os professores, a leitura que não seja meramente técnica e os valores humanísticos.

Tudo que se sustenta somente na imagem está sujeito a ruir em algum momento; desse modo o suposto progresso brasileiro mostra seu avesso na barbárie dos linchamentos e sua justiça canhestra.  


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* Máxima de Apparício Torelly, o Barão de Itararé