Sonhando, imaginando, Stevenson foi o
último dos românticos; escrevendo foi o último clássico da prosa inglesa.
Otto Maria
Carpeaux, História da literatura
ocidental
Não existem fenômenos morais, apenas
uma interpretação moral dos fenômenos
Nietzsche
O popular clássico de Robert Louis
Stevenson sempre esteve além dos limites
de uma simples historieta de terror; tornou-se perene obra que comporta
variegadas leituras acerca da subjetividade e da divisão do homem entre a
questão do bem e do mal . A incompatibilidade entre os impulsos, desejos, que
habitam a alma é apresentada através da transformação de uma personagem; não obstante a “mutação” seja precipitada por
uma substância química o que emerge são os impulsos soterrados do Dr. Henry Jekyll.
Obra
importante da literatura fantástica --- que tem como escopo a exposição do
embate provocado pela dicotomia entre bem e mal que habita a consciência de Dr.
Henry Jekyll --- O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde( The strange case of Dr.
Jekyll and Mr. Hyde) está além da categoria de novela de suspense e terror sendo uma alegoria sobre a presença de sentimentos contraditórios no imo da
criatura humana. Todavia, “ não há menor dúvida de que o pequeno romance de
Stevenson, escrito em 1885, é um dos ancestrais das modernas histórias de
mistério” ressalta o escritor russo Vladimir Nabokov em um ensaio sobre este
romance. O pérfido Edward Hyde não deve
ser considerado como pústula moral produzida pela ingestão de uma “poção
mágica”, senão no plano das aspirações reprimidas do consciencioso e polido Dr.
Jekyll.
Possível
ventilar a hipótese cuja obra supracitada possa indicar e antecipar a dissolução
dos limites morais rígidos entre o bem e o mal no comportamento humano; desse
modo a obra desenharia a compreensão da natureza humana através da mescla de
impulsos contraditórios. Que delimitação entre bem e mal fosse cara aos
costumes vitorianos --- vale pontuar que a obra publicada em 1886 é ambientada
em Londres --- e ao ímpeto religioso, carola, que visava a demonizar a
sexualidade etc, não é fato que
surpreenda; todavia a novela gótica de
Stevenson parece prefigurar a ruptura da ideia de uma polarização tão precisa
dos afetos de amor e ódio, bem e mal etc que terá evidência cabal nas obras de Nietzsche e
Freud.
"Combate entre o carnaval e a quaresma" (1559), Pieter Bruegel( O velho)
Em
Uma neurose do século XVII envolvendo o
demônio(1923), Freud destacou que “ não devemos nos surpreender se as
neuroses de tempos passados aparecerem sob roupagem demonológica, enquanto as
de nossa pouco psicológica época atual tomam aspecto hipocondríaco, disfarçadas
de enfermidades orgânicas”. Decerto que Freud não trata de questões da mística com o acento que Lacan as abordará,
especialmente, em seu seminário XX;
porém Freud revela que a figura do demônio era uma instância que representava o
proibido, o pecaminoso, no discurso social fruto da força repressora da
religião. Desse modo, Freud assevera: “Os demônios são, para nós, desejos maus,
rejeitados; são derivados de impulsos pulsionais repudiados, reprimidos. Nós
apenas recusamos a projeção dessas entidades psíquicas no mundo externo, que a
Idade Média realizava; entendemos que se originam na vida interior dos doentes,
onde habitam”. Neste artigo, Freud investiga a suposta possessão do pintor Christoph
Haitzmann como uma neurose de matiz religioso, e não de ordem mística.
O
tema do duplo, também, é evocado em O
estranho caso de Dr. Jekyll e Mr Hyde embora evitando a concretude fantástica apresentada, por
exemplo, em O duplo (1846) de Dostoiévski e em William Wilson (1839) de
Edgar Allan Poe. Nessas obras o
aparecimento do duplo é manifesto na
encarnação real de uma personagem idêntica ao protagonista apresentando, de
maneira especular, aspectos dissonantes da personalidade do protagonista. Dr
Jekyll se refere a Hyde como seu duplo,
mas Hyde se apresenta mediante uma transformação “química” que altera a
fisionomia de Jekyll, não havendo a característica do duplo especular. O autor parece
utilizar um calculado nível de
estranheza para que sua estória possa ser julgada como plausível no
quotidiano. Outrossim a caracterização do fantástico permanece decerto
delimitada, fugindo-se à suspensão marcante da realidade que ocorre no conto de
Poe e na novela de Dostoiévski. O tema do duplo
encontrará no conto Markheim(1885),
de Stevenson, uma expressão especular que se aproximaria mais da forma
escolhida por Poe e Dostoiévski.
"Retrato do Bufão Don Juan de Áustria"(1650), Velázquez
Porém a questão do duplo não é o problema fulcral delineado neste ensaio, mas sim o intuito de verificar a hipótese de O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde
ser considerado como um retrato que prefigurou
a dissolução da delimitação estanque entre bem e mal tanto na subjetividade
quanto nas relações sociais--- prefiguração
do que seria posteriormente apontado pela filosofia, psicologia e ciências
afins a partir do final do século XIX e meados do XX.
Relevante
remarcar que O estranho caso de Dr.
Jekyll e Mr. Hyde publicado em 1886 --- mesmo ano de Além do
bem e do mal de Nietzsche e alguns
anos antes das descobertas freudianas ---,
situa a questão do bem e do mal, que outrora tivera um caráter de aporia moral, no imo do sujeito humano
sendo a personagem, sob a forma de Hyde, a encarnação de um ser maligno e
inescrupuloso que irrompe após a ingestão de uma “poção química”. Também a novela
apresenta o ser maligno, Mr. Hyde, como entidade
do mal, mas que é parte da personalidade
de Dr. Jekyll; parte, componente a que Jekyll não pretende se furtar a dar vazão,
pois sob a forma de Hyde encontra livre curso para executar vilanias e desejos
inconfessáveis aos olhos da moral vitoriana do século XIX. Ao tentar se afastar da transformação o
protagonista comenta, em terceira pessoa: “ Jekyll sofreria dolorosamente no
fogo da abstinência”; e depois em
primeira pessoa: “ comecei a me torturar com agonias e anseios, como se Hyde lutasse por liberdade”.
E ainda: “ Meu demônio passou muito tempo enjaulado e, quando saiu, estava
rugindo”. Desta maneira a personagem identifica o dilema do mal e de seu demônio como um anseio que subjazia à sua consciência e vem à tona como que algo ao
seu talante que lhe é cabido; não há a designação de uma força maligna
sobrenatural que venha a se materializar
externamente e dirigir as ações do Dr. Jekyll, mas seus próprios
impulsos e desejos soterrados que sobretudo através da persona de Hyde atingem seu ápice expressivo.
Em
suas diatribes contra a filosofia e a moral, Nietzsche em Além do bem e do mal assevera que “ o homem não poderia viver ---
que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida, negar a vida.
Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida,
enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma
filosofia que se atreve a fazê-lo coloca, apenas por isso, além do bem e do
mal”. O martelo demolidor de sua filosofia ataca, também, a concepção moral que
precisava a sexualidade e os afetos contraditórios em um patamar demoníaco e ultrajante.
Nessa
famosa novela de Stevenson não se encontra uma personificação do demoníaco como
força externa que poderia influenciar o
austero e cordato Dr. Jekyll --- o mal não está alhures, senão dormente,
subjacente à consciência do protagonista. O enredo é apresentado sob o formato
entre estranho e o fantástico, sem
desembocar no sobrenatural, porque a experiência é descrita como fato
excepcional, mas que poderia ter ocorrido. Tudo isso sem que se espanque a
dúvida, a hesitação que imprime um sopro de suspense à estória.
Roger
Caillois em No coração do fantástico assevera como “ pedra de toque do fantástico a irredutível
impressão de estranheza”. O estranho descrito por Freud em seu artigo homônimo
de 1919 não deve, decerto, ser aplicado irrestritamente ao estranho na literatura; seria uma vã pretensão aplicar o aparato
teórico da psicanálise ao texto literário visando a obter uma interpretação derradeira,
--- uma hermenêutica das paixões identificadas no texto literário. No entanto,
Freud, em seu artigo supracitado, sustenta suas considerações teóricas acerca do sentimento de estranheza, em um conto, do escritor alemão E. T. A.
Hoffmann, denominado O homem da areia. Escolha que Freud não deve ter feito ao
acaso, pois Hoffmann escreveu contos e um romance, como Os elixires do diabo, sob o
gênero do fantástico e do estranho.
Freud
sempre ressaltou o poder de a arte
prefigurar suas descobertas e com a obra de Stevenson, também, parece ser possível
identificar o mesmo poder.