O furúnculo da ignorância*

A sabedoria não se transmite, é preciso que gente mesmo a descubra depois de uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira ver as coisas.
                                                                                        Proust,  À sombra das raparigas em flor




   Difícil alegar desconhecimento no moderno mundo da informação e do conhecimento técnico. As pessoas estão atoladas de informação; a acessibilidade e a riqueza de fontes informativas representam um mar revolto que arrasta opiniões ligeiras de indivíduos pouco afeitos à contestação. E o conhecimento técnico  ocupou o lugar de oráculo da saúde, do comportamento e dos mistérios do universo; quase tudo no corpo e fora dele deve ser decisivamente remediado ou explicado pelo conhecimento.

   Ramos do conhecimento que sejam considerados dissonantes, espúrios, pelo conhecimento científico oficial –– e, nesse sentido, poderíamos citar a psicanálise e a homeopatia –– são tidos como subjetivistas e sem resultados observáveis e mensuráveis. Há, sem embargo, interesses farmacológicos altamente rentáveis e um ímpeto de dissecar a alma humana como se fosse mera máquina de vísceras que produz um comportamento que pode ser puramente determinado. No entanto, os sujeitos continuam angustiados embora entupidos de psicotrópicos, barbitúricos, e em plena ignorância de seu ser; suas emoções que –– pelo ímpeto médico –– deveriam ser  dissolvidas, por esses medicamentos, persistem, porém, na surdina causando incômodo subjetivo . Além do bálsamo das medicações para a alma há, também, o ideal de felicidade e prosperidade encarnado na busca frenética por sucesso,  por bugigangas high tech, por medidas para um corpo atlético etc. De pronto, temos sujeitos que ignoram qualquer saber de si, vivendo tomados por suas compulsões, medos e por certo comodismo existencial –– aqui se define o homem moderno: um néscio bem informado.

O psicanalista francês Jacques Lacan, quanto a busca do sujeito por uma análise, dizia: “Mas todos sabem que aí não encorajo ninguém, ninguém cujo desejo não esteja decidido”. Isso não significa que a análise seja elitista ou coisa intelectualizada, mas que a análise pede certo engajamento do paciente e do analista também, pois mergulhar em si é tarefa dolorosa, furuncular. Determinada vez uma paciente –– em seu processo de análise, atravessando suas dores e  proferindo injúrias ao seu maridor traidor –– desvelou seu próprio desejo inconsciente na trama que produziu a traição de seu amado marido; a paciente reconheceu, por um certo saber de seus estados inconscientes, sua responsabilidade nos impasses de seu casamento –– reconhecimento apaziguador para a paciente.

   A ignorância, como paixão da alma, é a recusa quanto ao saber de si e aos mistérios da vida. Recurso humano; paixão da ordem da cólera e da inveja, é a ignorância –– no plano da subjetividade –– o obstáculo que o sujeito se aferra para evitar o doloroso percurso em busca de um saber de si; tal como tirar um sapato apertado ato no qual o alívio será precedido pela dor de retirá-lo; ou o furúnculo que o espremer dolorido proporcionará um posterior relaxamento prazeroso. Assim, qualquer busca interior é inicialmente insuportável e estranha, mas se tornará prazerosa e apaziguadora ao se avançar o processo. O mundo esplêndido moderno  se devota a estimular, sobretudo, os indivíduos eufóricos, consumistas e néscios que a sujeitos engajados  em um percurso destoante do consumo excessivo, buscando caminhos de saber interior e da vida por vias analíticas, místicas (espirituais), artísticas etc. Os caminhos são diversos e não podem ser transmitidos como em uma palestra de auto-ajuda, todavia não significa que fazer psicanálise seja o caminho aqui a ser aconselhado ou que ela deve ser adotada como  medida profilática.  

                                                  " Hamlet e Horácio no cemitério"(1839) Eugène Delacroix

   A concepção de ignorância, como paixão d’ alma, difere da socrática que a concebe sob a perspectiva de um passo primeiro para a sabedoria; a “ignorância filosófica” seria a predisposição –– pelo reconhecimento humilde da própria ignorância –– para a aquisição do saber. No entanto, aqui fica adotada a perspectiva da ignorância, como paixão, retomada pelo psicanalista Jacques Lacan  que pode ser encontrada em outras fontes. Recentemente, ao ler o evangelho apócrifo de Maria Madalena, ou Míriam de Mágdala, encontrei a concepção de ignorância como estado da alma, “clima”, da ordem da cólera e da cobiça. Importante frisar que os evangelhos apócrifos, diferentemente dos quatro evangelhos canônicos, não são abertamente aceitos pela Igreja Católica. Ademais, os fragmentos do evangelho apócrifo de Maria Madalena apontam a ignorância, a cobiça, a sabedoria vã e astuciosa( vaidade pelo conhecimento) etc como entraves para a elevação do espírito.

   Tarefa provavelmente improfícua, de consistência silfídica,  seria a de granjear  rigores de conceito para a ignorância através da forja de uma suposta erudição; melhor pensá-la talvez como um ponto de parada, de estagnação, ante os trilhos do insuportável quanto ao saber de si.

   Na psicanálise não se empreende um conhecimento científico dos próprios atos e comportamentos, senão no sentido da máxima de Proust –– colocada como epígrafe nesse ensaio ligeiro –– que indica a impossibilidade de uma transmissão da sabedoria, sendo ela um percurso único que parte de uma “ maneira de ver as coisas”. Nesse sentido, a psicanálise só pode ser mais um meio de saber para o sujeito que se encoraja a percorrer sua história, suas fantasias, seu desejo para, enfim, dissolver sua ignorância e seus medos. De modo aparentemente paradoxal o sujeito fica em paz com seus sapatos apertados.


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* Ensaio publicado também no portal NotíciasAju em 2013.