Ler
“ Carta ao pai” de Franz Kafka significa presenciar um pungente relato
autobiográfico que
inicialmente foi escrito para ser entregue ao pai do escritor e não para o
prelo. Ao alcançar a
publicação, a carta se tornou uma peça literária de valor perene embora
houvesse sido dirigida a Hermann Kafka, pai do escritor. Esta famosa missiva
pode servir como uma possível chave para a obra de Kafka, pois sua leitura
esclarece e enriquece o que se buscava na obra do autor.
A
presença do pai do escritor era esmagadora em sua vida; Kafka, em sua carta, destila traumas e
mágoas até alcançar o ponto de um queixume burlesco –– até risível, mas que sob a pena
brilhante do mestre tcheco ganha valor literário além das lamentações comuns. Porém, há também amor e admiração pelo
pai como se ele fosse uma figura onipresente, todavia inalcançável. Após a leitura da carta, resta a
impressão indelével a respeito da marca da relação entre filho e pai na obra de
Kafka; claro que a questão do poder opressivo e sufocante presente em obras
como “ O processo” e “ O castelo” está muito além de uma superficial e
reducionista leitura das relações do escritor com seu pai –– a tendência a
empreender uma leitura meramente edípica deve ser tomada com reservas. O escritor
também era um judeu que conhecia de perto a realidade do gueto e da exclusão
social.
Há
em Kafka o pesadelo do poder burocrático que oprime, contudo obras como o
inacabado “O castelo” e “O processo” podem ser lidas sob uma perspectiva
existencial; porém, ambas não são excludentes, sendo a força metafórica da obra
do escritor tcheco inesgotável. Modesto Carone, ensaísta e tradutor de Kafka,
lembra que “O castelo”, primeiramente, recebeu a interpretação teológica de Max
Brod (amigo e editor de Kafka) que observava nesse romance uma busca mística
por Deus. Outro exemplo, que pode ser fértil em interpretações, é o conto “
Comunicação a uma academia” –– que foi adaptado para o teatro –– relata a
história de um chimpanzé que foi “ humanizado”; por isso perde algo de sua
inocência selvagem para
adotar as idiossincrasias humanas e além de suas torpezas e vilanias.
No
entanto, novelas como “ O veredicto”(1912) e “A metamorfose”(1912) mostram mais
claramente a questão de uma sensação de inadequação familiar; a descrição de
Kafka do mal-estar de seus personagens é forte e ácida. O famigerado personagem
principal de “ A metamorfose”, Gregor Samsa, o homem que acorda transformado em
inseto passa toda a narrativa preso na residência familiar enfrentando a
estranheza de sua transformação e o asco de sua família ao vê-lo em sua nova
condição. A comunicação entre o Gregor inseto e sua família se torna ainda mais
difícil; ao poucos o inseto isolado definha e morre. A irmã tenta compreender
Gregor, mas o pai apenas adota uma posição de repulsa e incompreensão. Ademais,
vale lembrar que antes de se tornar inseto Samsa era arrimo de família, pois
seu pai estava aposentado. A nova condição de inseto do filho deixa o pai
furibundo por que teria que voltar a trabalhar e sustentar a família.
Além
das considerações existenciais que possam ser aplicadas ao homem-inseto, há a
situação absurda e terrível de seu personagem em relação à sua família; talvez
aí encontremos ecos da relação entre Kafka e seu pai. Não que se deva tentar
reduzir a preciosidade áspera do romance a uma fácil interpretação
psicanalítica; no entanto não se deve desconsiderá-la, pois é notória a
influência da relação de Kafka com seu pai em sua obra. E “ Carta ao pai”
releva, pelo seu caráter autobiográfico, o ódio e aversão que não deixam
de estar fusionados com o
amor e a admiração de um filho pelo seu autoritário pai –– o pai terrível de
Kafka também é sumamente admirado. Talvez o exemplo mais vívido seria a novela
“ O veredito” (1912) na qual há o claro conflito entre o personagem Georg
Bendemann e seu viúvo pai.
Há nessa “carta” a purulência do
escritor na consideração de si; porém todo o aviltamento de si parece servir
para enaltecer Hermann Kafka, tornando esse pai um ser tentacular que o
escritor, fantasiosamente, imaginava deitado sobre o mapa-múndi. O escritor
David Zane Mairowitz –– que assina o texto na
moderna biografia ilustrada (em quadrinhos) Kafka de Robert Crumb –– acredita que o
pavor de Kafka frente às relações de poder teria sua origem no convívio com seu
temido pai. Na carta o escritor dispara ao falar de si e do pai: “ Eu magro,
fraco, franzino, tu forte, grande, possante”; quando adulto Franz Kafka ainda sofria
com as admoestações de seu pai que tinha fama de ser um patrão hostil que
atormentava a vida de seus funcionários. Curiosamente, o autor da “carta” não
recordava de ter sido insultado diretamente pelo pai, mas afirmava que havia
outros meios de o pai ter agredido a ele e suas irmãs –– o comportamento irascível paterno
talvez fosse o meio que mais afligia a Franz.
A autocomiseração do autor, na carta,
tangencia o insuportavelmente risível, mas também o torna mais agressivo porque
este estado de autopiedade seria culpa do pai. Não obstante, esse pai temível e
autoritário está deformado
pelas das construções psíquicas do autor que, esplendidamente, se manifestam ao
longo de sua fantástica obra.
Afinal, qualquer interpretação –– embora
oriunda de uma vasta fortuna crítica –– permanecerá aquém da obra de Kafka.
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Foto de Hermann e Franz kafka.
* Texto publicado no portal Notíciasaju, link: http://www.noticiasaju.com.br/