As panelas rufaram agitadas pelo bafio de
ignóbeis sentimentos adormecidos sob a dissimulada cordialidade do brasileiro;
também ódios coloniais e rancores atávicos vieram a lume. Que um brasileiro
indignado é dado a bravatas não se trata de uma novidade, pois julga que
esbravejar com bandeirolas, ou tamborilando em panelas, possa produzir a
derrocada de políticos corruptos esquecendo que facilmente é tomado como uma
peça, joguete, na complexa articulação de interesses entre os grupos políticos
e financeiros. O brasileiro é paradoxalmente afeiçoado aos seus políticos
corruptos e mantém com eles a ambígua relação de um doce inimigo, amado e
odiado – relação emocional, infantil e lúbrica (erotizada) com os políticos
nacionais. Outrossim, a brasileirada possui uma admiração entranhada pelo
político doutor, medalhão, pela pompa abastada e com algo de quatrocentona – seria uma espécie de ideal asséptico e
quase inefável, porém longínquo. O brilho do distante poderoso não ofusca o
orgulho dos anônimos, mas ao se avizinhar o sucesso do semelhante – ou de quem
está sob a sola do sapato – o mal-estar toma, de assalto, a consciência desse
anônimo indignado.
O título foi sugerido,
como um mote, por Alessandro Santana – realizador de filmes com obsessões musicais infinitas – que é dado
a proferir pequenas máximas que são fruto de sua acuidade para enxergar o óbvio
que permanece velado ao mais completo sonambulismo existencial – a ignorância é
um estado de sono sobre algum saber da vida ou sobre si sendo simultaneamente a
ausência de um saber e o seu limite.
A indignação feroz
pode conferir uma aparência de bravura e um verniz de profundidade –
superficial conhecimento de causa. Decerto que indica a irascibilidade; e essa
não permite que o pensamento mais sereno observe o incessante fluxo e a suposta
revolução (na astronomia, há o sentido de um giro completo) das ações humanas –
ao livre-pensador lúcido pode lhe ser dada a capacidade de entrever a
miserabilidade de todo radicalismo. Ademais, em que poderia resultar a
convulsão de panelas em varandas? Talvez, no orgulho em achar que inspirou
mudanças políticas – o egotismo e a mídia permitem o devaneio da influência ao
pequeno manifestante ocasional.
Ao compartilhar, em
redes sociais, o que há de mais prosaico em sua vida o indivíduo cabotino chega
a confundir a torrente própria de acontecimentos da internet com o que publica
sobre si. Desta maneira, sente a comichão irreprimível que o leva a opinar
sobre qualquer tema e irrefletidamente aprovar ou condenar pessoas e
acontecimentos – mais fácil escolher um culpado do que permitir um diálogo com
várias vozes. Em verdade, na internet as vozes apenas se chocam nas redes sociais
em uma busca sedenta pela atenção de seguidores. Nessas redes sociais, em
maioria, há o seguidor que funciona apenas como uma escora imaginária não sendo
um real admirador, pois o tempo de interlocução é escasso ante o oceano de
postagens a serem conferidas. Todavia, seria um pensamento simplista condenar
as redes sociais e não entendê-las no âmbito de uma nova ferramenta que serve
de meio de expressão para as velhas paixões humanas.
-- “Um inimigo do povo!” –
gritava a burguesia nesta conhecida peça de Ibsen (“Um inimigo do povo” foi
lançada até em edição de bolso no Brasil) contra o respeitável e não menos
vaidoso Dr. Stockmann; evidente que o Brasil atual não deve ser mais civilizado
que uma cidadezinha da Noruega do século XIX. Neste país tropical, a algaravia
das varandas encontrou seus óbvios inimigos figadais e os declararam como o
ocaso de um país que sempre aguarda os seus melhores dias. Quaisquer revoluções
políticas e culturais ocorridas ao redor do planeta no Brasil deveriam ser
descritas apenas como circunvoluções – girando em torno da mesmice e do atraso
e sob a bitola do pensamento conservador. O Dr. Stockmann, médico de uma
estação termal, descobre que as águas de seu balneário estão contaminadas pela
atividade comercial da cidade. De imediato, Thomas Stockmann, homem de ciências
munido de provas, encontra o apoio de um jornal local, todavia as denúncias do
médico começam a atingir os interesses de ilustres habitantes da cidade que são
representados por seu irmão, o prefeito. Ao contrariar interesses
financeiros de poderosos de seu município, o médico passar a não ter mais apoio
do jornal “A voz do povo” e se iniciam as injúrias e a difamação de seu
posicionamento em relação ao perigo sanitário do balneário local. Não obstante,
o Dr. Stockmann não cede às pressões orquestradas pelo jornal local. Essa peça
de Ibsen suscita a discussão de vários pontos e este não é o objetivo deste
ensaio – funcionaria, a peça, como uma espécie de vinheta sobre a circularidade das
maquinações na política.
Norman Rockwell, " The holdout" ( the jury scene), 1959 para o "Saturday evening post"
Espantoso notar que os avanços socioeconômicos
trouxeram um ódio patronal (e também colonial) ao peito do brasileiro mediano
que, de repente, viu-se em uma estranha nostalgia de uma intervenção militar ou
ianque. O conservadorismo recrudesceu entre os indivíduos medianos,
semiletrados e concursados que não suportaram determinadas melhorias sociais
(dos mais pobres) e o reconhecimento de direitos e de cidadania a grupos de
homossexuais e de gênero. O conservadorismo sempre vociferou contra a novidade;
talvez se dependesse de sua ação não haveria acontecido a conquista do direito ao voto pelas mulheres. A sensação de
liberdade é difícil de ser administrada pelo indivíduo em sua ignorância
existencial(de saber sobre si), por isso ele prefere a sujeição às figuras
paternais de poder.
Um cartaz
recente, nas ruas, continha a seguinte louvação: “corruptos, mas íntegros” destinada aos políticos que operaram o último
golpe partidário – esquema de mudança de poder.
Quem escreveu isso deve ser um resignado patriota que nutre um indisfarçado
e ambivalente sentimento pelos políticos nacionais – o “amódio” nomeado por
Lacan nas neuroses.
A ebulição raivosa da indignação política
arrefeceu nas varandas, pois parecia sedenta por uma purificação ufanista e
quimérica de toda a corrupção. Por quê?