Loucura, déficit e genialidade *

             

"Com o tempo, os homens também não poderão deixar de reconhecer que, qualquer que tenha sido a natureza das minhas 'idéias delirantes', em todo caso certamente eles não têm diante de si um doente comum."
                                                         Memórias de um doente do nervos, Daniel Paul Schreber


A concepção arraigada de que a loucura estaria entre os polos do déficit ou de uma suposta genialidade obnubilada revela-nos, possivelmente, a maneira comum de se encarar o estranhamento provocado pelos desregramentos próprios àquela. Adotam-se políticas de socialização como meio de amenizar, edulcorar, a presença de psicóticos, loucos, no espaço social. Não significa que ao pintar ou passear no shopping o psicótico esteja manifestando seu intelecto singular ou aplacando seu suposto déficit. 
 
Permanece um fato inconteste que a psicose, a vesânia, popularmente conhecida como loucura, sempre causou um mal-estar secular. Antes de começar a ser classificada e perscrutada pelo saber médico através da psiquiatria, a loucura era tida como possessão demoníaca; e o louco, um ser abjeto imerso em degenerescência moral. A psiquiatria clássica se encarregou de “classificar as espécies”, ou seja, os fenômenos referentes ao delírio e às alucinações. Na verdade da psicose, esses fenômenos indicam a loucura como pathos do agir humano e não como mero desregramento do psiquismo.

Atualmente, há uma parte da psiquiatria que está excessiva e exclusivamente voltada para a medicalização das afecções da alma. Esta perspectiva supõe que vários distúrbios do comportamento humano, além das psicoses, sejam tratados por um predominante uso de medicação prescrita. Ora, o ser humano está além de fibras e ossos, contudo essa tendência almeja eliminar a implicação subjetiva da pessoa com seu padecer psíquico. Certamente, não se deprime ou se enlouquece à toa, pois as pessoas têm uma história familiar e social que preexiste às suas afecções e que não pode ser suprimida por medicamentos –– há circunstâncias subjetivas para o surto psicótico. 
 
Entretanto, não adoto um tom panfletário contra o uso de medicação psiquiátrica, porque em determinados casos é uma necessidade clara. Evidentemente que para os que circundam o paciente, seja a família ou amigos, os episódios são assustadores e incômodos, podendo levar o psicótico, o esquizofrênico, à internação em uma clínica especializada. 
 
Perguntar-se-ia se a esquizofrenia não seria um mal congênito? Tal indagação não obtém uma resposta satisfatória, porque o psiquismo humano não nasce formado. Há interferências familiares e culturais em seu desenvolvimento ao longo da infância. A ciência médica considera a psicose como uma mazela congênita ou neuronal diferente da concepção de uma estruturação do psiquismo em relação a seu meio familiar e social. Haveria, sobretudo, uma estruturação psíquica surgida da hereditariedade, da história das gerações de uma família.

Freud apontou, ao longo de sua obra, que o delírio e as alucinações possuem um sentido, uma lógica semelhante à que ele identificava na estrutura dos sonhos. Freud chegou a postular que a psicose seria como um sonho, ou seja, tanto nos sonhos como no surto psicótico o que há de inconfessável no ser humano está exposto sem os enfadonhos limites da realidade. Nesses fenômenos psíquicos se percebe, em flor, a sexualidade, o ódio, a agressividade etc. 
 
Talvez “o maior louco” de que temos notícias seja Daniel Paul Schreber, alto magistrado alemão, filho de família abastada e de amplo reconhecimento social. O juiz Schreber publicou, em 1903, suas “Memórias de um doente dos nervos” nas quais narra o processo de sua doença e o que entende como sua missão delirante junto à raça humana. Interessante notar que, ao surtar, o juiz Schreber regride a um estado de desorganização mental característico de uma esquizofrenia grave; ao longo de seu percurso de internações ele consegue se recuperar e reaver suas funções como magistrado, contudo teve novos surtos e terminou seus dias em um hospital psiquiátrico. Dificilmente, poderíamos falar de déficit em Schreber, suas memórias nos atestam seu espírito brilhante turvado pelo seu quadro esquizofrênico. Mas resisto a considerar sua obra, embora fascinante, como algo de gênio. 
 
Lacan, psicanalista francês, dedicou décadas ao estudo da obra do genial escritor James Joyce, considerando que ele era psicótico, porém com um status diferente, já que nunca havia surtado efetivamente. Para Lacan, sua condição subjetiva estava indicada em seus escritos; o que não significa diagnosticar Joyce, senão captar o que a obra desse gênio pode ensinar à psicanálise. Em sua obra, Lacan frisa que a psicose não é uma questão de déficit, mas de posição subjetiva – sendo que a atividade de escritor de Joyce havia garantido sua estabilidade. Interessante notar que ele teve uma filha esquizofrênica, Lucia Joyce que Lacan brevemente comenta no seminário 23(O Sinthoma) dedicado ao escritor James Joyce.

Então, a vesânia revela, com todos os seus infortúnios, o lado obscuro porém existente nos que se julgam plenamente normais e que pretendem dissimular seu componente humano, visceral. Contudo, afirmar que a loucura é um laivo de liberdade seria uma tolice –– quem já presenciou os infortúnios de um surto psicótico pode atestar isso. Sucessivos surtos podem provocar danos cognitivos etc.

A questão da inserção social do psicótico comporta avanços contra a antiga exclusão que os loucos sofriam. Porém forçar padrões de adaptação social é escorregar diante da singularidade da loucura. Nesse sentido o louco nos aponta um faísca do que se pode chamar de liberdade.

Outro equívoco bastante difundido é que a loucura sempre implicaria em déficit cognitivo, em incapacidade intelectual. Ora, a loucura não corresponde à estupidez ou à genialidade denegrida, trata-se antes de um registro particular da subjetividade humana – tampouco encontraremos um pequeno Van Gogh ou um Joyce em qualquer oficina terapêutica.

Em suma, a loucura, como um fato humano, pode ser alvo de exclusão e de veladas sevícias, contudo sempre fará parte de qualquer civilização.





* Publicado no site do Cinform online em setembro de 2010 e no Jornal da Cidade em junho de 2015.  

       

Vocação e conformismo *




         O modo tupiniquim de encarar a questão da escolha do que fazer como realização pessoal dificilmente foge das amarras de um  utilitarismo maçante. Fazer aquilo de que se gosta --- seja pintar, fotografar ou dar aulas, mesmo que surgido por  vocação,  tende a ser encarado com descrédito e como  perda de tempo.  Nossa cultura não encara a questão da vocação como  o fazem em culturas de inspiração protestante e germânica, nas quais  a vocação ganha ares de afirmação da existência.  

A palavra vocação advém do verbo vocare, do latim, que quer dizer chamar;  realmente, as pessoas, quando afirmam que têm determinada vocação, sentem que foram chamadas, talhadas para o que  realizam.  Mas em nossa cultura a realização do apelo vocacional soa como simples diletantismo, --- um capricho ante a luta pela subistência e a possiblidade de galgar uma boa posição social. Verdade que milhões são massacrados em empregos medíocres, porém o ponto em questão não é pensar o ímpeto vocacional de forma desgarrada da realidade social; lembremos que inúmeros artistas, empreendedores e  cientistas vieram de baixas camadas populares.  Em classes mais favorecidas a busca pela vocação pode enfrentar mais empecilhos, já que ela nem sempre se rende a anseios imediatistas --- a classe média tende a anelar  a ascensão  social  como valor supremo.

Herdamos uma colonização de caráter usurpador, na qual saqueadores, renegados, exilados e escravos  formaram a base do que viria a se denominar uma nação.  Como valores culturais e humanistas podiam ser cultivados e transmitidos em meio a um quiproquó ? O filósofo maldito Olavo de Carvalho  em um pequeno ensaio intitulado Vocações e equívocos,  afirma que a “ ética da vocação “  não tinha espaço em nossa colonização. Ainda assevera que, em países católicos, a vocação perde o sentido de realização pessoal sendo considerada sobretudo como vocação ao sacerdócio. Diferentemente da consideração do apelo vocacional em países protestantes e de influência judaica.

Em qualquer conversa de bar ou reunião familiar, a questão da escolha do que se pretende fazer surge para demarcar se é por dinheiro ou prazer fugaz. Não se entende a dedicação a algo sem considerar o ganho financeiro ou a filiação a um hedonismo barato.      A execução de uma atividade que não traga um ganho imediato não é entendida face o senso de prosperidade brasileiro, sendo que quem a executa é visto como atoleimado --- imprudente.   A  manutenção de um emprego que não se suporta é considerada exemplo de virtude e maturidade. O lugar do chamado vocacional foi tomado por um tecnicismo --- engendrado pela pobre visão tropical do que seria desenvolvimento humano --- que prepara o indivíduo para ser um exemplar reprodutor de ideias.

O escritor alemão Goethe publicou, entre os anos de 1795 e 1796, o romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister no qual narra as aventuras de Wilhelm ao recusar  o projeto paterno, que o destinava aos prósperos negócios da família, em prol de seu autoaprimoramento que julgava estar na atividade de ator e na poesia. No século XX,  Thomas Mann, o grande escritor alemão desse século,  abandona a tradição comercial familiar para realizar sua obra, destino que não o impediu de ter uma vida burguesa confortável e uma prole numerosa.

O atendimento ao apelo vocacional tende a ser comprendido, na retórica diária do brasileiro, no âmbito do impulso artístico somente.  Atender a apelo tal,  para um membro da classe média,  reclama um comportamento leviano e fora da realidade da vida. O preferível comodismo gera  uma massa servil  que, sôfrega,  necessita do bálsamo carnavalesco, da mascarada,  para poder fruir  o que está opilado na realidade brasileira do conformismo vocacional.

Em psicanálise o sujeito é evocado, chamado,  por seu desejo além de considerações utilitaristas. Ao desopilar o desejo não há a selvageria em busca de saciedade --- isso seria uma vulgata do que  é o desejo para  a psicanálise; mas sim  a responsabilidade do que se é, sem padecer pelo que se julga que foi imputado pelos outros. Vocação é desejo…


* Publicado no site  do Cinform online  em agosto de 2010
 

  



O livro dos sonhos *


O livro dos sonhos

Em 2012 o jornal britânico The Guardian publicou uma lista, elaborada por críticos e estudiosos, contendo os cem melhores livros não ficcionais da história do pensamento ocidental. Há diversas categorias nessa lista, desde clássicos da filosofia, história até biografias, livros sobre arte, música etc. Em uma categoria que denominaram “Mente” (Mind) elegeram a “Interpretação dos sonhos”  de Freud como obra essencial para a cultura. 

          Em Meados da década de 30, em idade avançada, Freud haveria dito a seu discípulo Ernest Jones que em sua vasta obra escolheria, sem pestanejar, a Interpretação dos sonhos (1900) e os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) como realmente definitivas para a psicanálise. Curiosamente, a “Interpretação dos sonhos” fora publicada em novembro de 1899, mas o editor a datou com o novo século que a obra tanto marcaria. Sobre o que versa a Interpretação dos sonhos? Obviamente que o título esclarece o que norteia o intento freudiano: buscar a interpretação, o sentido inconsciente dos sonhos, sendo os sonhos realização de desejo inconsciente. Mas e os pesadelos? Sucintamente, trata-se de brusca irrupção do desejo inconsciente durante o sono e que pelo conteúdo angustiante ( do sonho) leva o sujeito a despertar repentinamente. No prefácio à primeira edição de a “Interpretação dos sonhos”, Freud afirma que dificilmente se poderia elucidar o  sentido de fobias, obsessões e delírios sem explicar a origem das imagens oníricas.

          Decerto que a “Interpretação dos sonhos” representou marca indelével para o pensamento do século XX, influenciando as artes principalmente o movimento surrealista –-– André Breton, poeta e um dos mentores do surrealismo, chegou a visitar Freud –––, e também, evidentemente, a psicologia, a psiquiatria dinâmica e demais áreas do conhecimento. Freud trouxera a lume o mecanismo de determinados aspectos inconscientes do comportamento humano; a sexualidade ––– erroneamente confundida com uma suposta ênfase freudiana na simples genitalidade –– e em suma a presença do desejo inconsciente.    

          O termo “inconsciente” não foi concebido por Freud, já era empregado durante o romantismo alemão (Sturm und Drang) na pena de escritores e filósofos, designando o lugar da inconsciência e das profundezas do ser. Em contrapartida, Freud forja um conceito de inconsciente que não está nas profundezas abissais do ser, mas na manifestação de sintomas subjetivos e comportamentais, atos falhos, esquecimentos e em sua via régia ––– o sonho, a atividade onírica. Desse modo, observa que os sonhos não são meros resíduos da atividade anímica ou mesmo somática –– como era postulado por autores que o precederam. A ideia de um inconsciente como fenômeno obscuro, visceral e impassível de tradução ventilara a obra de filósofos e poetas dos século XIX  que pressentiram e prefiguraram sua importância no agir humano. Sempre o sublime ofício do poeta, do vate, de prefigurar e vaticinar, como em devaneio, o que somente depois será apreendido e descrito pela ciência

          Os sonhos podem ser traduzidos simbolicamente, já que se apresentam por imagens, porém o fato de os sonhos poderem ser interpretados não significa estabelecer um guia de interpretação, uma hermenêutica para este produto do inconsciente, não; para a psicanálise o sonho tem relevo clínico quando falado, enunciado pelo paciente ao psicanalista. E a atenção que o analista dedica aos sonhos deve ser a mesma que destina à escuta do padecimento do paciente em seus sintomas, fobias, em suas repetições incômodas; não dando importância  ao que se poderia julgar como um relato fidedigno do sonho,  pois ao se relatar um sonho esse sofre as deformações e esquecimentos próprios da vigília; quando um sonho é relatado se trata, de pronto, de uma elaboração secundária, ou seja, o relato do sonho é um versão do que fora sonhado. E o psicanalista escutará os eventuais sonhos de seus pacientes como parte da história deles e não por simples ímpeto interpretativo.  

          O interesse pelos sonhos data da Antiguidade ou mesmo da aurora da espécie humana; Freud, no primeiro capítulo de a “Interpretação dos sonhos”, apresenta uma revisão da literatura científica que trata dos sonhos, citando desde Aristóteles, Hipócrates (o “pai da medicina”) e a relação que ele estabelecia entre os sonhos e as doenças, um famoso estudo de Artemidoro (a Oneirocritica)  até os autores modernos. Outrossim, Freud reconhece estas contribuições, mas ressalta que elas se centraram em descrições e em correspondências simbólicas que resultaram em uma interpretação determinada do que foi sonhado. 

    A descoberta freudiana é a de uma lógica  do inconsciente e da formação dos sonhos em seus mecanismos psíquicos principais: a condensação e o deslocamento –– entretanto seria sem propósito e enfadonho abordá-los aqui. O que é relevante remarcar é que Freud estabelece um mecanismo, um método, para descrever as formações do inconsciente que são os sonhos, atos falhos, lapsos, sintomas comportamentais etc. O inconsciente, esse incômodo componente do psiquismo outrora associado ao demoníaco,  quando passou a ser freudiano causou ferida e indignação na arrogância humana que julgava poder mensurar as paixões d’alma em suas facetas e contradições –– qualquer transeunte pode ser tomado por uma oposição ferrenha, biliosa, às teses freudianas e refutá-las durante um cafezinho recreativo na padaria da esquina.
          
A escuta freudiana destinada aos devaneios, sonhos e sintomas deu vazão à constatação da singularidade da experiência humana, além de reducionismos comportamentais e da exclusão do diferente, do doente e do subversivo. Por fim, Marcel Proust –– o grande escritor francês que provavelmente possuía certa ciência das ideias  freudianas –– asseverou que “ se um pouco de sonho é perigoso, não é menos sonho que há de curá-lo, e sim mais sonho, todo o sonho. É preciso conhecer inteiramente os nossos sonhos para não mais sofrer com eles”.







 --------------
* Publicado no Cinform online em julho de 2011

Eufemismos inquietantes


De repente, usar certos termos deveria representar um constrangimento capaz de ruborizar o mais rude estivador. A era da qualidade, da saúde, da polidez comportamental, é marcada por ações e por uma certa regulação vocabular que, paradoxalmente, não contém a mais frívola prolixidade acerca do que se pode considerar como saudável ou não –– programas televisivos matinais espalham receitas de bolo e de saúde. Julgaram que trocar o termo psicose maníaco-depressiva pelo já degradado “bipolar” representaria algum oásis para o portador deste “ transtorno”. Certamente que os mais circunspectos profissionais de saúde advogariam em prol da suavidade que a mudança do termo nosográfico acarretou; porém fica a questão: a mudança na designação nosográfica representou  alívio ao portador ou aos que sentem o natural incômodo frente à loucura e aos desalinhos do psiquismo?

          Outro exemplo é o do transexualismo que segundo os guias e códigos médicos não pode mais ser tachado como uma “doença” fruto de alguma degenerescência biológica e moral, uma anomalia,  recebendo a designação de “ transtorno da identidade do gênero” já que o transexual sente ser do outro sexo, embora tenha nascido homem pertence ao sexo oposto, buscando, geralmente, a troca de nome, de identidade e a realização de cirurgias que retirem suas características masculinas ou femininas no caso da mulher transexual que se sente um homem em um corpo feminino. Recentemente, foi noticiado o fato de o primeiro transexual sergipano ter conseguido a mudança judicial de seu nome e identidade, fazendo sua transposição legal para o sexo feminino, pois psiquicamente há muito se devia julgar uma mulher, mas a mudança de nome, identidade e a retirada do pênis ganham relevo para o transexual que possui uma condição diferente do travestismo e suas variações. Tratar o transexualismo como um “ transtorno de identidade”  seria uma imprecisão diagnóstica ou forma hesitante de enfrentar uma situação que embaraçaria qualquer jantar familiar ? O que denota atenção é que qualificar uma condição subjetiva como “transtorno” a torna mais palatável tanto para especialistas quanto para o público leigo –– retirar o transexualismo da categoria das anomalias, dos verdugos,  aplaca mais o mal-estar comum que os problemas que o transexual venha a enfrentar. Notadamente, o transexual  possui outra identidade que não a do gênero em que nasceu; relatos mostram que a transformação transexual seria apenas uma natural confirmação de seu ser, sendo a mudança de identidade e operação do órgão sexual etapas necessárias à assunção do que sempre habitou o interior do transexual.   

          Ao tratar a psicose e transexualismo como transtornos, estaríamos buscando igualar determinadas condições subjetivas estruturais a fenômenos, episódios, que estão descritos como transtornos –– uma transtorno bipolar seria uma simples alteração fenomênica episódica da mesma ordem que a curiosa síndrome das pernas inquietas que pode assolar qualquer austera senhora; quem lida, detidamente,  com  a esquizofrenia sabe que o fim de uma crise, surto, não elimina a psicose. Importante separar a estrutura psíquica, condição subjetiva, da manifestação de sintomas; considerar  a loucura e o transexualismo como transtornos ou distúrbios é uma forma benevolente de não tratá-los com a abjeção secular a que eram destinados; mas pouco contribui, um discurso baseado em eufemismos, para o tratamento que em ambos, na psicanálise, é iniciado caso haja demanda do paciente psicótico, transexual etc. Eufemismos repetidos, a torto e a direito, por várias instâncias da sociedade forjam um horizonte de acolhimento do diferente, necessário aos tempos da saúde compulsória, do  culto ao politicamente correto –– eleger um novo termo para uma afecção psíquica não representa, necessariamente, um avanço em seu estudo.

          Em uma psicanálise, o sujeito é chamado a dispensar seus subterfúgios, seus eufemismos, que encobrem o desejo que insiste pela fenda de seu inconsciente. Para Jacques Lacan, seria necessário que os analistas, na análise, possuíssem “ o sentimento de um risco absoluto”* para que talvez, na condução do tratamento, o desejo do sujeito o mova a um novo e singular posicionamento subjetivo e existencial. Na condução do tratamento das neuroses –– que radicalmente difere da condução analítica das psicoses –– o analista é que deve buscar levar o sujeito a aluir a densa crosta dos ideais do eu, porém sem gerar uma angústia excessiva ao sujeito sofredor. Mais fácil é o trabalho quando o analista reverbera o inconsciente do paciente em algum recorte na interpretação significante; para tanto não é suficiente, nem imprescindível, reunir imensa erudição, mas sim que o analista tenha decantado seu desejo, sua fantasia, em sua própria análise. A cultura livresca do analista cai aturdida  ante as agruras das paixões, escutadas por ele, dos que se aventuram a enfrentar o divã.  

          Não se espera a depreciação do diagnóstico, tomá-lo como mero rótulo, pois sua função é precisa para a condução adequada de um tratamento psicoterápico ou medicamentoso; tratar o paciente esquizofrênico como um deprimido pode trazer novos surtos. Na psicanálise o diagnóstico, psicodiagnóstico, não contribui como eufemismo acalentador, senão no que nos é útil para a condução do processo de análise do paciente.  Um Otto Fenichel** e seu didatismo maçante pouco têm do ímpeto questionador e libertário de Freud.

          Só o sujeito sofredor avalia a angústia que a dança de suas pernas inquietas lhe evoca e talvez certos eufemismos sirvam apenas como uma contradança para quem padece.





*Lacan, j. Seminário 23, O sinthoma. Pág.44
**Otto Fenichel, Teoria psicanalítica das Neuroses.  

Eterno replay de um gol contra



             Qualquer crise é apenas, no fundo, a projeção de nossa angústia existencial

Enrique Vila-Matas, Dublinesca

Confesso que, ao ouvir essa máxima do cineasta e aforista Alessandro Santana, fiquei meio que pasmo tanto com sua indignação em relação ao nosso eterno marasmo cultural provinciano quanto por conter um dos dados elementares da condição humana: a repetição. O que, psicanaliticamente, chamamos  de compulsão à repetição.
          
        Não pensem que vou insistir que apreendam este difícil conceito  psicanalítico que mesmo a Freud surpreendeu, não; antes tentemos visualisar o que título nos propõe: um gol contra que se repete eternamente. Talvez isso provoque um sincero esgar –– aversão instantânea. Entretanto, julgamos que, imerecidamente, repetimos infortúnios e situações desagradáveis ao longo da vida. Alguns pedirão: fale de modo mais direto sobre o que é essa repetição! Certamente. Não é incomum o sujeito, em um desabafo incontido, lamentar que mais uma vez cometeu erros que jurara evitar. Isto desde compulsões comportamentais, brigas, ira, encontros e desencontros amorosos; o pânico ocasional, mas nunca ausente de todo.
 Provavelmente, seja isso que o título nos evoque: um incômodo quase nauseante, pois não queremos saber que repetimos. Certa vez falei o aforismo a algumas pessoas e o efeito não me pareceu nada agradável, mesmo aos que não têm pendores futebolísticos, aliás nem precisava. Até agora tem parecido confuso o que falo, mas vejamos uma simples compulsão de lavar,  incessantemente, as mãos, por exemplo –– deixemos de lado o diagnóstico imediato, ligeiro, de toc (transtorno obsessivo compulsivo) ––  verifiquemos que não há uma justificativa higienista e racional para a execução insistente de tal ato, porém o executor, tomado por essa compulsão, nos apresentará inúmeras justificativas para seu ato de lavar as mãos. Então, perguntarão: por que se repete esse comportamento ? Alguns dirão, primeiramente, que se trata de alguma disfunção neurológica ou comportamental; realmente é uma saída mais fácil que buscar uma etiologia, causa, subjetiva (psíquica) para essa pequena repetição. Difícil aceitar, mas devo dizer que essa compulsão funciona para o sujeito, inconscientemente, como uma barreira, uma tampa, para que questões subjetivas suas não invadam seu pensamento consciente.

"Melhor é impossível"(1997) é um filme premiado com Jack Nicholson e Helen Hunt que trata das desventuras amorosas, compulsões e gols contra de um escritor renomado vivido por Jack Nicholson. Nessa película todo pequeno inferno neurótico está jocosamente descrito, já que se trata de uma comédia. As evitações, hesitações e atos mecânicos que o personagem realiza em seu comportamento podem nos indicar, detidamente, que eles servem também como bloqueio ao afeto em suas relações. O  ato compulsivo  evita, canhestramente, que  algo do ser do sujeito fique sob o sol. Caso o pensemos com mais atenção, o ato compulsivo repetido à exaustão, forma o que chamei de  barreira, de contenção, para que o indivíduo se aliene quanto a determinado afeto que não suporta em si e que o angustia no átimo de sua aparição. Paradoxalmente, o ser humano carrega em seu psiquismo o que lhe é familiar e estranho; sei que os céticos pensarão que tal afirmação é artimanha psicanalítica; porém  a estranheza que o sujeito pode sentir em si, já que julga não se conhecer totalmente, tende a levá-lo a procurar o que se denomina como auto-conhecimento. Direi que a psicanálise não trata disso, senão de um saber sobre si –– e não há aí  um tropeço tautológico**. Pois, a concepção de auto-conhecimento difere do que pode ser encontrado pelo paciente em um divã psicanalítico. Na tradição filosófica saber (do latim sapere) designa não apenas o conhecimento técnico, mas algo além que reside na aplicação da virtude.  
          
        Mas a compulsão à repetição freudiana não se restringe apenas a atos mecânicos do comportamento. Às vezes, a segura distância da posição de  mero observador possibilita que se enxerguem os impasses alheios com uma frieza quase científica; aí se pensa como o vizinho se envolve sempre no mesmo tipo de relacionamento que o desgasta, que o corrói, mas ele continua ali a rondar os bares, inferninhos da vida e neles capta sempre o mesmo tipo  de relacionamento, de encontro. O observador distante, por mais que julgue, guarda uma tranquilidade impassível, pois aquilo se passa apenas com o vizinho; porém as repetições daquele continuam ganhando livre curso por mais que não sejam percebidas por sua posição de circunspecto observador. O hábito pedante, renitente,  de citar filmes me impele a mais uma rápida referência cinematográfica: “ Feitiço do tempo ” estrelado por Bill Murray e Andie Macdowell, pois acredito que capta o que se pode entender por compulsão à repetição. Possível que alguns não aprovem essa referência para o tema da repetição, porém fica a cargo do leitor tecer suas considerações. Curiosamente, cito duas comédias ao me referir à repetição, talvez propositadamente ela tenha as facetas de sofrimento e de chiste, sendo tragicômica.    
          
          Em um corrosivo texto, um libelo, chamado “ A psicanálise verdadeira, e a falsa” Jacques Lacan  desfere duros golpes contra  a obscurantista perspectiva da psicologia do eu que centra seus recursos em prol da adaptação do sujeito a patterns comportamentais e sociais –– evidente depauperamento humanístico e existencial. Também, já em relação à compulsão à repetição, Lacan declara que “ (...) descoberta por Freud, foi também por ele identificada à insistência de uma verdade de que continua a clamar no deserto da ignorância”¹. Para que talvez algum saber, sobre o inconsciente, vencesse o deserto da ignorância de si, do comodismo da existência, eis o objetivo da causa freudiana que não deve ser confundido com que terapias que colocam um tampão sobre a fenda da subjetividade –– o inconsciente.

         Inegável que um gol contra ainda é um gol, não deixa de ser uma realização por mais incômoda que possa parecer –– como uma repetição amarga que insiste para que o novo apareça e aflore como saber. Não raro, a pessoa procura um consultório de psicanálise por não mais suportar suas “repetições” que chamamos de sintomáticas; ali a fala, guiada pela técnica analítica, possibilita que certa porção da repetição do sujeito se desate para o novo –– algum apaziguamento ante o que se repete e o que se é.      
       
        Os aforismos de Alessandro Santana deveriam ser editados em folhinhas de calendário para que propiciassem certa reflexão matinal. Talvez essa tornasse o desjejum um pouco indigesto tanto quanto a subjetividade nos tempos  da medicalização maciça e do higienismo comportamental.


 * Texto publicado no site do jornal Cinform Online em 2010
**Tautologia: vício de linguagem que consiste em repetir o mesmo pensamento com palavras sinônimas.
¹ Lacan, J. Outros escritos. 2003.
              


Normalidade bovina




Podemos nos desvencilhar, aqui, da ladainha sobre o que pode ser considerado como “normalidade”, sendo melhor considerar a que o conceito de normalidade serve; sim, deve haver algum intuito  para que ele seja direta e indiretamente evocado.

          O que parece ser aterrorizante à sociedade moderna é o sujeito que não produz ou consome de forma utilitarista, permanecendo como rebotalho do ideal de desenvolvimento moderno. Em contrapartida, a ciência médica ao esquadrinhar, mapear, o cérebro declara a dificuldade em determinar uma pura “normalidade” no comportamento humano; contudo em nossa era não é necessário ser “normal”, pois o indivíduo que cultive uma certa agitação consumista e o frenesi festivo também será bem aceito; o expansivo adolescente tardio, extemporâneo, e o comprador compulsivo são socialmente aceitos até o ponto no qual gerem ônus ao não pagar a fatura do cartão de crédito. Talvez não seja descabido supor que a “normalidade”, antes  apregoada pelo despeito moralista e pelo recato que animava as boas famílias, passou a ser observada sob princípios  mercadológicos de saúde e bem-estar social que parecem, mais do que nunca, interferir nas relações interpessoais; como se esses princípios  fossem colocados para tentar suprir a falência dos limites na educação e na convivência entre as pessoas; talvez, ainda, o impalpável discurso politicamente correto seja uma tentativa canhestra, trôpega, de resgatar valores  que estariam deturpados.  Eis uma bela tese para se aventar em uma crônica ligeira.

Recordemos que, em nossa pitoresca capital, havia uma  senhora que zanzava tranquilamente pelo shopping usando  maquilagem pesada e um tanto quanto bizarra ao olhar bovino dos transeuntes; decerto que “ a velha do shopping” –– essa era sua alcunha –– transitava tranquilamente consumindo e celebrando as alegrias que um shopping pode proporcionar. Tempos depois a bem intencionada ação de orgãos públicos de saúde mental buscou sanear a imagem de louca  da famigerada “velha do shopping”; fotos foram divulgadas nas quais ela ostentava o aspecto rutilante da normalidade que não incomoda ao olhares alheios. Embora devamos recusar o tentador recurso à especulações sem embasamento, não podemos negar o fato: pouco tempo após o plano de intervenção ––– para sua saúde mental e seu vestuário ––– ter sido aplicado tivemos a notícia de seu fim trágico após se deixar cair de um viaduto na capital da qualidade de vida. 

          Não é surpresa afirmar que o indivíduo procura a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise para que essas especialidades garantam sua normalidade sintomática; raramente algum ímpeto “heurístico”, acerca de seu sofrimento subjetivo, move sua queixa até os consultórios. O indivíduo dito “normal”, neurótico, chega sôfrego em busca de garantias de que não está enlouquecendo, pois estranha quando algo do inconsciente irrompe em seu comportamento habitual; a disjunção psíquica entre o que ele deseja  e as demandas alheias, sociais, aparece causando forte incômodo ao pensamento consciente.O desejo e a repetição embaraçosa de situações e relacionamentos malogrados causam sofrimento psíquico deixando o indivíduo, cultor de sua suposta normalidade, meio enlouquecido –– descarrilado. De modo anedótico, o indivíduo neurótico se assemelha ao gato de Cheshire em Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, pois em um diálogo com Alice esse gato se julga louco apenas por agir de modo oposto ao de um cachorro.  Nesse romance, há a marcante descrição de um mundo com seres fantásticos que habitam uma espécie de realidade alternativa e subversiva.

Também não devemos acreditar que há um limite clínico tênue, volátil, entre a loucura  e outros quadros de sofrimento psíquico, embora haja quadros clínicos de difícil diferenciação diagnóstica. Existem fenômenos  psicopatológicos precisos que nos permitem, por exemplo, estabelecer a diferença entre uma esquizofrenia e um quadro de pânico( medo) neurótico, ­––– o que torna o diagnóstico essencial para a condução do tratamento psicanalítico. Em contrapartida, um ilusório conceito de normalidade não figuraria como garantia de diagnóstico nem indicaria algo útil do ponto de vista clínico para a psicanálise. Árduo estabelecer o que é normal em um indivíduo que se constitui de modo único e singular a partir de seu romance familiar e de seu meio social. Para Freud o sujeito que conseguisse, de alguma forma, amar e criar estaria próximo ao que se pode considerar como saudável, porém isso não significa a mera adaptação pragmática, mercadológica, mas sim certa consonância com o desejo inconsciente.

          É  patente o desconforto da sociedade ante os indivíduos que não produzem e consomem ––– verdadeiro estorvo para os ideais de desenvolvimento e prosperidade. Desse modo, o louco, o dependente químico grave, o senil etc formam uma incômoda massa que não combina com adestramento da compulsão consumista e do hedonismo festivo. Então, o indivíduo comum tende a ficar enlouquecido quando passa a não conseguir uivar conforme esse adestramento lhe ensinou e daí corre para os consultórios; no entanto não para tentar trilhar qualquer caminho de seu desejo através de seus dramas, mas para que os trilhos de sua anódina rotina sejam retomados.

          Na novela “ Minha vida “ –– do escritor russo  Anton Tchekhov –– o protagonista Missail não corresponde às expectativas de seu pai que destinava a ele um bom cargo no funcionalismo público russo, no entanto Missail recusa o confortável futuro vislumbrado por seu pai. Porém Missail não demonstra possuir nenhum talento, apenas assume a ocupação de pintor de paredes sequioso por uma vida simples em comunhão com os mais humildes. Após se casar, vai viver na zona rural em uma pequena propriedade, mas além de ser enganado e ofendido pela ignorância dos mujiques termina abandonado por sua esposa. Após o fracasso de sua experiência bucólica,  Missail Póloznev deixa o idílio comunitário campestre e voltar a ser pintor de paredes em sua cidade. Surpreendentemente essa novela, de 1896, não nos revela um personagem que se rebela contra a determinação social e a autoridade paterna em prol da busca da realização de seu talento, senão um jovem errante que não se adapta às demandas familiares e sociais ––– um outsider do século XIX. Diferentemente do Wilhelm Meister de Goethe, no qual a personagem busca empreender sua formação estética e humanística para descobrir sua vocação, Missail é um homem desajustado. Livres da tola pretensão de diagnosticar autores e personagens, fiquemos com o inevitável incômodo desta narrativa de Tchekhov que tem o seguinte subtítulo: “ Conto de um provinciano”.

          Entre a normalidade bovina e o frenesi obrigatório, socialmente apreciado, resta o abismado homem moderno ainda mais deprimido e angustiado.
         



Um abade que se vestia de mulher*



  Habituados quanto ao que se pode chamar de boa ordem no plano da  fornicação, quase sempre eivada de fins reprodutivos, não nos são palatáveis as expressões humanas que fogem ao que se pode, supostamente, fiar como saudáveis. Figura fascinante, o Abade de Choisy decano da Academia  Francesa de Letras, no século XVIII, autor de uma monumental História da Igreja em 11 volumes, membro da alta nobreza, tendo sido criado com Filipe d’Orleans, irmão de Luís XIV, conservava também, o venerável abade o hábito  de se vestir de mulher na juventude sendo chamado de madame de Sancy. Travesti ilustre, personagem de difícil enquadramento em um estudo psicológico ligeiro.

Destinado à categoria de degenerescência moral por séculos, o travestismo ficou entre os becos soturnos, satisfazendo a sede inconfessável, trôpega, de alguns, mas como algo censurável. Porém, hordas noturnas de cavalheiros distintos continuarão a escorrer por esses becos. 

 A pândega carnavalesca, oásis tupiniquim onde aspirações e  frustações  ganham o bálsamo da mascarada,  permite o travestismo ocasional, lúdico, desgarrado dos papéis mantidos em riste durante a convivência quotidiana.  Ali,  um mujique pode dar vazão a seu lado Mata Hari –-- uma Julie Andrews serelepe há de saltitar pelos bailes, antes que a bruma das exigências medianas, do dia seguinte, chegue.  Na mitologia grega, talvez maior exemplo de travestismo seja o de Aquiles, o guerreiro, que durante certo período viveu como moça sendo chamado Pirra, a ruiva.

O abade de Choisy, madame de Sancy, vestia-se com garbo e requinte, apreciava ser alvo da galanteria dos homens e olhares de admiração das mulheres. A madame de Sancy,embora não passasse despercebida, guardava respeito pelo pudor alheio.  Travestido, uma mulher coquete, a madame de Sancy  tinha relacionamento sexual com mulheres, preferencialmente; quantos aos homens, prestava-lhes apenas “pequenos favores”. Na obra “ Memórias do abade de Choisy vestido de mulher” ele, o abade, revela-nos que fora criado como uma menina para fazer companhia a Filipe d’Orleans, que recebera a mesma criação para não disputar o trono com seu irmão Luís XIV. Acreditava-se que, efeminado, Filipe não se interessaria pelo poder; tendo tratamento de menina apenas, perderia a virilidade e não cobiçaria o trono. 

O abade,  ora condessa de Barres, ora madame de Sancy,  vestia-se com recato e frequentava a missa assiduamente, sendo fina no trato, obsequiosa,  e dada à prática da caridade.  Em suas “Memórias”  o abade fala que se vestia de mulher quando adulto pois “um hábito de infância é uma coisa estranha, é impossível se livrar dele: minha mãe, logo que nasci, acostumou-me às roupas de mulher.”  Nota-se também que sua mãe fora uma missivista compulsiva, o que talvez tenha influenciadoo filho, um autor  prolífico.

Madame de Sancy nos descreve com indisfarçado prazer, sem adotar uma inflexão grave,  seu culto pela elegância nos trajes, pelas pedrarias, que a tornavam esplendorosa aos olhares de todos. Nesse afã garboso, seduzia  mulheres com as quais vivia e possuía imensa satisfação em enfeitar-lhes como fazia a si.  Em sua alcova, tendo a petite ruelle** como testemunha, o  nobre abade François-Timoleón de Choisy, –-– a Madame de Sancy -–– entregava-se aos sussuros  e ensaios amorosos com mulheres.

As “ Memórias do abade de Choisy vestido de mulher “ retratam não somente as aventuras galantes da juventude do abade –– que ainda jovem abandona o hábito de se apresentar publicamente como mulher –––, mas também costumes do século XVIII,  em detalhes preciosos. O tradutor da obra, para o nosso vernáculo, observa, curiosamente, que ao falar de si o abade alterna em sua escrita ora o feminino, ora o masculino.   

Clinicamente, na psicanálise,  é perceptível a diferença entre o travestismo e o transexualismo; no entanto essa diferença não é considerada em termos de desvio de conduta  que visem a denunciar o sujeito que imaginariamente não  se enquadra ao que seria uma sexualidade normatizada; essa concepção caduca das paixões humanas se apresenta através de uma pobre consideração psicopatológica.  Porém as especificidades clínicas não são desconsideradas, pois um delírio de transformação do corpo próprio à certas psicoses pode, erroneamente, ser confundido com o natural processo de transformação de gênero do transexualismo.Por exemplo, a eviração delirante de Schreber --- descrita em suas Memórias de um doente dos nervos “analisadas” por Freud --- é estruturalmente diferente da transformação de gênero própria ao percurso transexual.

Podendo facilmente ser  taxado de libertino,  pervertido,  o abade e sua vida nos impõem a observação dos riscos de qualquer achatamento moral e psicológico. O abade, que alguns podem considerar como uma personalidade dissoluta, não adota, em suas Memórias, um tom lascivo ou plangente –-– mesmo quando se arruinou no jogo após abandonar seu travestismo requintado. Encerra suas Memórias concluindo: “ que feliz seria, se eu tivesse bancado a bela, ainda que fosse feia! O ridículo é preferível à pobreza”. E a de espírito oprime e enegrece  o que há de singular.

            *Versão modificada de um texto publicado no Cinform Online em 2010.
** “ Pequena viela” termo coloquial, em francês, que designa o espaço entre a cama e a parede.