O livro dos sonhos *


O livro dos sonhos

Em 2012 o jornal britânico The Guardian publicou uma lista, elaborada por críticos e estudiosos, contendo os cem melhores livros não ficcionais da história do pensamento ocidental. Há diversas categorias nessa lista, desde clássicos da filosofia, história até biografias, livros sobre arte, música etc. Em uma categoria que denominaram “Mente” (Mind) elegeram a “Interpretação dos sonhos”  de Freud como obra essencial para a cultura. 

          Em Meados da década de 30, em idade avançada, Freud haveria dito a seu discípulo Ernest Jones que em sua vasta obra escolheria, sem pestanejar, a Interpretação dos sonhos (1900) e os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) como realmente definitivas para a psicanálise. Curiosamente, a “Interpretação dos sonhos” fora publicada em novembro de 1899, mas o editor a datou com o novo século que a obra tanto marcaria. Sobre o que versa a Interpretação dos sonhos? Obviamente que o título esclarece o que norteia o intento freudiano: buscar a interpretação, o sentido inconsciente dos sonhos, sendo os sonhos realização de desejo inconsciente. Mas e os pesadelos? Sucintamente, trata-se de brusca irrupção do desejo inconsciente durante o sono e que pelo conteúdo angustiante ( do sonho) leva o sujeito a despertar repentinamente. No prefácio à primeira edição de a “Interpretação dos sonhos”, Freud afirma que dificilmente se poderia elucidar o  sentido de fobias, obsessões e delírios sem explicar a origem das imagens oníricas.

          Decerto que a “Interpretação dos sonhos” representou marca indelével para o pensamento do século XX, influenciando as artes principalmente o movimento surrealista –-– André Breton, poeta e um dos mentores do surrealismo, chegou a visitar Freud –––, e também, evidentemente, a psicologia, a psiquiatria dinâmica e demais áreas do conhecimento. Freud trouxera a lume o mecanismo de determinados aspectos inconscientes do comportamento humano; a sexualidade ––– erroneamente confundida com uma suposta ênfase freudiana na simples genitalidade –– e em suma a presença do desejo inconsciente.    

          O termo “inconsciente” não foi concebido por Freud, já era empregado durante o romantismo alemão (Sturm und Drang) na pena de escritores e filósofos, designando o lugar da inconsciência e das profundezas do ser. Em contrapartida, Freud forja um conceito de inconsciente que não está nas profundezas abissais do ser, mas na manifestação de sintomas subjetivos e comportamentais, atos falhos, esquecimentos e em sua via régia ––– o sonho, a atividade onírica. Desse modo, observa que os sonhos não são meros resíduos da atividade anímica ou mesmo somática –– como era postulado por autores que o precederam. A ideia de um inconsciente como fenômeno obscuro, visceral e impassível de tradução ventilara a obra de filósofos e poetas dos século XIX  que pressentiram e prefiguraram sua importância no agir humano. Sempre o sublime ofício do poeta, do vate, de prefigurar e vaticinar, como em devaneio, o que somente depois será apreendido e descrito pela ciência

          Os sonhos podem ser traduzidos simbolicamente, já que se apresentam por imagens, porém o fato de os sonhos poderem ser interpretados não significa estabelecer um guia de interpretação, uma hermenêutica para este produto do inconsciente, não; para a psicanálise o sonho tem relevo clínico quando falado, enunciado pelo paciente ao psicanalista. E a atenção que o analista dedica aos sonhos deve ser a mesma que destina à escuta do padecimento do paciente em seus sintomas, fobias, em suas repetições incômodas; não dando importância  ao que se poderia julgar como um relato fidedigno do sonho,  pois ao se relatar um sonho esse sofre as deformações e esquecimentos próprios da vigília; quando um sonho é relatado se trata, de pronto, de uma elaboração secundária, ou seja, o relato do sonho é um versão do que fora sonhado. E o psicanalista escutará os eventuais sonhos de seus pacientes como parte da história deles e não por simples ímpeto interpretativo.  

          O interesse pelos sonhos data da Antiguidade ou mesmo da aurora da espécie humana; Freud, no primeiro capítulo de a “Interpretação dos sonhos”, apresenta uma revisão da literatura científica que trata dos sonhos, citando desde Aristóteles, Hipócrates (o “pai da medicina”) e a relação que ele estabelecia entre os sonhos e as doenças, um famoso estudo de Artemidoro (a Oneirocritica)  até os autores modernos. Outrossim, Freud reconhece estas contribuições, mas ressalta que elas se centraram em descrições e em correspondências simbólicas que resultaram em uma interpretação determinada do que foi sonhado. 

    A descoberta freudiana é a de uma lógica  do inconsciente e da formação dos sonhos em seus mecanismos psíquicos principais: a condensação e o deslocamento –– entretanto seria sem propósito e enfadonho abordá-los aqui. O que é relevante remarcar é que Freud estabelece um mecanismo, um método, para descrever as formações do inconsciente que são os sonhos, atos falhos, lapsos, sintomas comportamentais etc. O inconsciente, esse incômodo componente do psiquismo outrora associado ao demoníaco,  quando passou a ser freudiano causou ferida e indignação na arrogância humana que julgava poder mensurar as paixões d’alma em suas facetas e contradições –– qualquer transeunte pode ser tomado por uma oposição ferrenha, biliosa, às teses freudianas e refutá-las durante um cafezinho recreativo na padaria da esquina.
          
A escuta freudiana destinada aos devaneios, sonhos e sintomas deu vazão à constatação da singularidade da experiência humana, além de reducionismos comportamentais e da exclusão do diferente, do doente e do subversivo. Por fim, Marcel Proust –– o grande escritor francês que provavelmente possuía certa ciência das ideias  freudianas –– asseverou que “ se um pouco de sonho é perigoso, não é menos sonho que há de curá-lo, e sim mais sonho, todo o sonho. É preciso conhecer inteiramente os nossos sonhos para não mais sofrer com eles”.







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* Publicado no Cinform online em julho de 2011