Loucura, déficit e genialidade *

             

"Com o tempo, os homens também não poderão deixar de reconhecer que, qualquer que tenha sido a natureza das minhas 'idéias delirantes', em todo caso certamente eles não têm diante de si um doente comum."
                                                         Memórias de um doente do nervos, Daniel Paul Schreber


A concepção arraigada de que a loucura estaria entre os polos do déficit ou de uma suposta genialidade obnubilada revela-nos, possivelmente, a maneira comum de se encarar o estranhamento provocado pelos desregramentos próprios àquela. Adotam-se políticas de socialização como meio de amenizar, edulcorar, a presença de psicóticos, loucos, no espaço social. Não significa que ao pintar ou passear no shopping o psicótico esteja manifestando seu intelecto singular ou aplacando seu suposto déficit. 
 
Permanece um fato inconteste que a psicose, a vesânia, popularmente conhecida como loucura, sempre causou um mal-estar secular. Antes de começar a ser classificada e perscrutada pelo saber médico através da psiquiatria, a loucura era tida como possessão demoníaca; e o louco, um ser abjeto imerso em degenerescência moral. A psiquiatria clássica se encarregou de “classificar as espécies”, ou seja, os fenômenos referentes ao delírio e às alucinações. Na verdade da psicose, esses fenômenos indicam a loucura como pathos do agir humano e não como mero desregramento do psiquismo.

Atualmente, há uma parte da psiquiatria que está excessiva e exclusivamente voltada para a medicalização das afecções da alma. Esta perspectiva supõe que vários distúrbios do comportamento humano, além das psicoses, sejam tratados por um predominante uso de medicação prescrita. Ora, o ser humano está além de fibras e ossos, contudo essa tendência almeja eliminar a implicação subjetiva da pessoa com seu padecer psíquico. Certamente, não se deprime ou se enlouquece à toa, pois as pessoas têm uma história familiar e social que preexiste às suas afecções e que não pode ser suprimida por medicamentos –– há circunstâncias subjetivas para o surto psicótico. 
 
Entretanto, não adoto um tom panfletário contra o uso de medicação psiquiátrica, porque em determinados casos é uma necessidade clara. Evidentemente que para os que circundam o paciente, seja a família ou amigos, os episódios são assustadores e incômodos, podendo levar o psicótico, o esquizofrênico, à internação em uma clínica especializada. 
 
Perguntar-se-ia se a esquizofrenia não seria um mal congênito? Tal indagação não obtém uma resposta satisfatória, porque o psiquismo humano não nasce formado. Há interferências familiares e culturais em seu desenvolvimento ao longo da infância. A ciência médica considera a psicose como uma mazela congênita ou neuronal diferente da concepção de uma estruturação do psiquismo em relação a seu meio familiar e social. Haveria, sobretudo, uma estruturação psíquica surgida da hereditariedade, da história das gerações de uma família.

Freud apontou, ao longo de sua obra, que o delírio e as alucinações possuem um sentido, uma lógica semelhante à que ele identificava na estrutura dos sonhos. Freud chegou a postular que a psicose seria como um sonho, ou seja, tanto nos sonhos como no surto psicótico o que há de inconfessável no ser humano está exposto sem os enfadonhos limites da realidade. Nesses fenômenos psíquicos se percebe, em flor, a sexualidade, o ódio, a agressividade etc. 
 
Talvez “o maior louco” de que temos notícias seja Daniel Paul Schreber, alto magistrado alemão, filho de família abastada e de amplo reconhecimento social. O juiz Schreber publicou, em 1903, suas “Memórias de um doente dos nervos” nas quais narra o processo de sua doença e o que entende como sua missão delirante junto à raça humana. Interessante notar que, ao surtar, o juiz Schreber regride a um estado de desorganização mental característico de uma esquizofrenia grave; ao longo de seu percurso de internações ele consegue se recuperar e reaver suas funções como magistrado, contudo teve novos surtos e terminou seus dias em um hospital psiquiátrico. Dificilmente, poderíamos falar de déficit em Schreber, suas memórias nos atestam seu espírito brilhante turvado pelo seu quadro esquizofrênico. Mas resisto a considerar sua obra, embora fascinante, como algo de gênio. 
 
Lacan, psicanalista francês, dedicou décadas ao estudo da obra do genial escritor James Joyce, considerando que ele era psicótico, porém com um status diferente, já que nunca havia surtado efetivamente. Para Lacan, sua condição subjetiva estava indicada em seus escritos; o que não significa diagnosticar Joyce, senão captar o que a obra desse gênio pode ensinar à psicanálise. Em sua obra, Lacan frisa que a psicose não é uma questão de déficit, mas de posição subjetiva – sendo que a atividade de escritor de Joyce havia garantido sua estabilidade. Interessante notar que ele teve uma filha esquizofrênica, Lucia Joyce que Lacan brevemente comenta no seminário 23(O Sinthoma) dedicado ao escritor James Joyce.

Então, a vesânia revela, com todos os seus infortúnios, o lado obscuro porém existente nos que se julgam plenamente normais e que pretendem dissimular seu componente humano, visceral. Contudo, afirmar que a loucura é um laivo de liberdade seria uma tolice –– quem já presenciou os infortúnios de um surto psicótico pode atestar isso. Sucessivos surtos podem provocar danos cognitivos etc.

A questão da inserção social do psicótico comporta avanços contra a antiga exclusão que os loucos sofriam. Porém forçar padrões de adaptação social é escorregar diante da singularidade da loucura. Nesse sentido o louco nos aponta um faísca do que se pode chamar de liberdade.

Outro equívoco bastante difundido é que a loucura sempre implicaria em déficit cognitivo, em incapacidade intelectual. Ora, a loucura não corresponde à estupidez ou à genialidade denegrida, trata-se antes de um registro particular da subjetividade humana – tampouco encontraremos um pequeno Van Gogh ou um Joyce em qualquer oficina terapêutica.

Em suma, a loucura, como um fato humano, pode ser alvo de exclusão e de veladas sevícias, contudo sempre fará parte de qualquer civilização.





* Publicado no site do Cinform online em setembro de 2010 e no Jornal da Cidade em junho de 2015.  

       

Vocação e conformismo *




         O modo tupiniquim de encarar a questão da escolha do que fazer como realização pessoal dificilmente foge das amarras de um  utilitarismo maçante. Fazer aquilo de que se gosta --- seja pintar, fotografar ou dar aulas, mesmo que surgido por  vocação,  tende a ser encarado com descrédito e como  perda de tempo.  Nossa cultura não encara a questão da vocação como  o fazem em culturas de inspiração protestante e germânica, nas quais  a vocação ganha ares de afirmação da existência.  

A palavra vocação advém do verbo vocare, do latim, que quer dizer chamar;  realmente, as pessoas, quando afirmam que têm determinada vocação, sentem que foram chamadas, talhadas para o que  realizam.  Mas em nossa cultura a realização do apelo vocacional soa como simples diletantismo, --- um capricho ante a luta pela subistência e a possiblidade de galgar uma boa posição social. Verdade que milhões são massacrados em empregos medíocres, porém o ponto em questão não é pensar o ímpeto vocacional de forma desgarrada da realidade social; lembremos que inúmeros artistas, empreendedores e  cientistas vieram de baixas camadas populares.  Em classes mais favorecidas a busca pela vocação pode enfrentar mais empecilhos, já que ela nem sempre se rende a anseios imediatistas --- a classe média tende a anelar  a ascensão  social  como valor supremo.

Herdamos uma colonização de caráter usurpador, na qual saqueadores, renegados, exilados e escravos  formaram a base do que viria a se denominar uma nação.  Como valores culturais e humanistas podiam ser cultivados e transmitidos em meio a um quiproquó ? O filósofo maldito Olavo de Carvalho  em um pequeno ensaio intitulado Vocações e equívocos,  afirma que a “ ética da vocação “  não tinha espaço em nossa colonização. Ainda assevera que, em países católicos, a vocação perde o sentido de realização pessoal sendo considerada sobretudo como vocação ao sacerdócio. Diferentemente da consideração do apelo vocacional em países protestantes e de influência judaica.

Em qualquer conversa de bar ou reunião familiar, a questão da escolha do que se pretende fazer surge para demarcar se é por dinheiro ou prazer fugaz. Não se entende a dedicação a algo sem considerar o ganho financeiro ou a filiação a um hedonismo barato.      A execução de uma atividade que não traga um ganho imediato não é entendida face o senso de prosperidade brasileiro, sendo que quem a executa é visto como atoleimado --- imprudente.   A  manutenção de um emprego que não se suporta é considerada exemplo de virtude e maturidade. O lugar do chamado vocacional foi tomado por um tecnicismo --- engendrado pela pobre visão tropical do que seria desenvolvimento humano --- que prepara o indivíduo para ser um exemplar reprodutor de ideias.

O escritor alemão Goethe publicou, entre os anos de 1795 e 1796, o romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister no qual narra as aventuras de Wilhelm ao recusar  o projeto paterno, que o destinava aos prósperos negócios da família, em prol de seu autoaprimoramento que julgava estar na atividade de ator e na poesia. No século XX,  Thomas Mann, o grande escritor alemão desse século,  abandona a tradição comercial familiar para realizar sua obra, destino que não o impediu de ter uma vida burguesa confortável e uma prole numerosa.

O atendimento ao apelo vocacional tende a ser comprendido, na retórica diária do brasileiro, no âmbito do impulso artístico somente.  Atender a apelo tal,  para um membro da classe média,  reclama um comportamento leviano e fora da realidade da vida. O preferível comodismo gera  uma massa servil  que, sôfrega,  necessita do bálsamo carnavalesco, da mascarada,  para poder fruir  o que está opilado na realidade brasileira do conformismo vocacional.

Em psicanálise o sujeito é evocado, chamado,  por seu desejo além de considerações utilitaristas. Ao desopilar o desejo não há a selvageria em busca de saciedade --- isso seria uma vulgata do que  é o desejo para  a psicanálise; mas sim  a responsabilidade do que se é, sem padecer pelo que se julga que foi imputado pelos outros. Vocação é desejo…


* Publicado no site  do Cinform online  em agosto de 2010