O linchamento do público

                                                O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro*

           
Os habitantes dos trópicos nunca foram assíduos adeptos da civilidade e do valores humanísticos, pois o ímpeto para a pândega e a leviandade sobrepuja qualquer ideal que exija mais esforço coletivo; não que o trabalho seja de somenos importância para o entendimento de progresso, todavia progresso é palavra que pesa no pendão nacional e na consciência mediana, sobretudo no sentido material bem mais do que humanístico e social. As palavras “Ordem e progresso” parecem afixadas para que se tornem valores arraigados, no entanto somente forjam um ideal volátil.  É sempre o inflado orgulho que impele a imagem de um rutilante desenvolvimento estrutural a guiar os mais doces sonhos de realização desta nação.

E por louvar avidamente o desenvolvimento estrutural e econômico, como saída derradeira para os problemas seculares do Brasil, a barbárie torna a se fazer presente a um passo de ser rotineira. Recentemente foi possível notar que os casos de linchamento se manifestaram com mais evidência --- ao menos as manchetes de alguns jornais desta capital demonstraram isso. De pronto,  ficou claro que a classe média e os populares estavam fazendo justiça com as próprias mãos, pois o estado estaria falhando na prevenção e punição de crimes etc. Munido de débeis argumentos qualquer ignorante mediano pode, sob o escudo de um grupo, praticar a justiça que lhe aprouver; o exemplo banal e corriqueiro é o das torcidas de futebol que, inflamadas por ideais pálidos, cometem atrocidades.

As torcidas podem ser relegadas ao conceito de tribos urbanas, diferentemente da meia dúzia de néscios embrutecidos que se reúnem, de supetão, para punir um ladrão ou um motorista imprudente que atropelou alguém. Evidente que não é fácil se furtar à indignação e à raiva por ter algo furtado, roubado mediante agressão,ou por haver presenciado o atropelamento de uma senhora a caminho da missa dominical. Porém, reverenciar um bando de tolos infelizes ­­­- que praticam a covarde justiça sumária contra marginais ---- é compactuar  com o atraso secular de uma sociedade tropical que sempre deixou a dever quanto à garantia dos direitos individuais e à urbanidade. No entanto, a parvoíce dos justiceiros ocasionais, que se aglutinam após a súbita captura do meliante, julga a ação necessária e que servirá de exemplo para outros delinquentes que, caso venham a roubar na vizinhança, receberão a justa paga pelo delito. O pior  é que os linchamentos não estão apenas ocorrendo nas zonas de miséria da periferia da capital do saroio, mas também nos bairros de classe média nos quais haveria a suposição de um maior esclarecimento. 

Óbvio que agir como cidadão e imobilizar o delinquente é um ato legítimo de defesa que contribui para a paz social, porém arrogar ao grupo de justiceiros ocasionais o direito a surrar e a trucidar o criminoso não pode ser tolerado e legitimado. Possível imaginar que a fúria por justiça começará a se estender a qualquer infrator que contrarie o pequeno grupo de vingadores ocasionais --- desse modo vizinhos incômodos e barulhentos poderão ser punidos e brigas entre casais poderão ser resolvidas através da celeridade de ação desses grupos. Em qualquer aspecto a ignorância e crueldade contribuem  sobremaneira para a sensação de insegurança e impunidade, pois os vingadores ocasionais passam a agir de forma semelhante ao gatuno, ao meliante, ---- nesta perspectiva a insegurança aumenta porque não se sabe com quem estará o açoite.

O pensamento unânime, unilateral, destina a ira contra quem o aborrece; o livre-pensamento deve ser suprimido quanto a temas polêmicos; apenas o veredicto prévio, conclusão categórica, de  determinados grupos intelectuais, políticos e étnicos, considerados legítimos, ganha relevo. A pensadora alemã Hannah Arendt pagou caro por ter acompanhado o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazista, e observado que Eichmann poderia ser considerado um burocrata medíocre e acéfalo, não um psicopata ---- apenas cumpria ordens e amava seu terrível Führer. Todavia a consideração de Arendt enfureceu a comunidade judaica que almejava condenar um monstro antes de enforcá-lo em 1962; porém a pensadora teve a visada de uma preponderante "banalidade do mal" no comportamento desse oficial nazista. Para Eichmann suas ações eram legítimas de acordo com o ideário nazista e o comando de Hitler. Hannah Arendt também apontou o colaboracionismo infame de alguns líderes judaicos com o processo do holocausto; ao delinear este ponto incômodo da história a pensadora foi duramente rechaçada pela ignorância furiosa do oprimido que havia então se tornado opressor.

                                Tela  de Jenner Augusto da série " Alagados" (1985)

Paradoxalmente o oprimido se transforma em opressor; o indivíduo mediano precisa porém do aval de alguma bandeira ou ideal fugidio para poder dar vazão ao seu odiozinho e polir seu narcisismo maculado pela  insolência do opositor; usando a força e estupidez eliminam o direito à defesa e à consideração das particularidades de cada ato.

O indivíduo moderno é um ser repleto de direitos; nada deve barrar sua livre expressão embora para isso seja necessário desmerecer a noção de civilidade e qualquer bom senso nas relações. O progresso tupiniquim é o do oco avanço estrutural e econômico que se confunde com o culto à imagem celebrado por  um povo que  encontra uma valiosa fruição em reality shows e grandiosidades esportivas e que outrossim desmerece os professores, a leitura que não seja meramente técnica e os valores humanísticos.

Tudo que se sustenta somente na imagem está sujeito a ruir em algum momento; desse modo o suposto progresso brasileiro mostra seu avesso na barbárie dos linchamentos e sua justiça canhestra.  


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* Máxima de Apparício Torelly, o Barão de Itararé