Pois o pensamento doentio devora a carne do corpo mais do que a febre ou a tuberculose.
Guy de Maupassant
Once I wanted to be the greatest/
No wind or waterfall could stall me /
And then came the rush of the flood/
Stars of night turned deep to dust
Chan Marshall
Talvez
o isolamento acarrete certo preciosismo e dificuldade em acatar as próprias
limitações, pois sempre precisamos do outro, do próximo, para reconhecer
nele nossas raivas, ódios e falhas inconfessáveis. O apoucamento existencial
não pode ser apartado do insulamento próprio ao atraso atávico da cultura nos
trópicos –– ilusão volátil de que desenvolvimento humanístico pode ser
assimilado a crescimento econômico e estrutural.
Entre
praias, coqueiros e o frenesi carnavalesco segue a mentalidade tropical débil e
seus indivíduos atabalhoados formando o que Tobias Barreto designou por “ estado
de mendicidade espiritual” sendo esta a qualidade de nossa cultura atrasada.
Suas diatribes, quanto ao atraso tropical, podem ser encontradas em alguns de
seus ensaios e artigos; por exemplo, em um ensaio chamado “ Sobre a filosofia
do inconsciente” Tobias emite o seguinte
desabafo: “ O Brasil padece de uma espécie de prisão de cérebro: tem peçonha no
miolo, É preciso sujeitar-se à dolorosa operação de crítica de si mesmo, do
desapego, do desdém, e até do asco de si mesmo, a fim de conseguir uma cura
radical”. O grande filósofo e jurista tropical –– e também devemos
dizê-lo: um caga-raiva genial –– nos aponta o óbvio ululante que é a “prisão de
cérebro” tropical e algo mais interessante que é a dificuldade provinciana de
digerir o mal-estar inerente à sua história, sobrando hiatos incômodos que
emperram uma possível “ cura”.
Tobias
Barreto defendia o ímpeto de elaboração do atraso atávico e não o rejeitava
como fazia a intelligentsia dos trópicos. Em “ O partido da
reação em nossa literatura” torna a este tema ao defender o livro de Sílvio
Romero “ A filosofia no Brasil”, pois o crítico Sousa Bandeira Filho, alvo da
polêmica de Tobias, acreditava que levantar “ questão” quanto ao atraso
brasileiro seria “ perder tempo com banalidades”. O crítico que brilhava
na corte de Dom Pedro II deveria julgar que um futuro alvissareiro haveria de
chegar sem tardança ––orgulho tropical, cheio de pompa, que ainda anima
os discursos verbosos que celebram as maravilhas e a pujança de tão ricas
paragens. Tobias e Sílvio Romero eram polemistas irascíveis –– profundos
conhecedores do atraso atávico dos trópicos –– todavia, com base no
estudo “ Estilo tropical” de Roberto Ventura, é possível aventar a hipótese de
que ambos acreditavam também em uma suposta grandiosidade nacional recalcada a
que buscavam dar vazão ou estimular a partir de um ímpeto desenvolvimentista,
de um culto aos preceitos positivistas, em voga na época, e de um germanismo
como tentativa de engendrar –– por meio de certo beletrismo combativo ––
as luzes nos trópicos.
Evidente
que inúmeros habitantes da nação promissora, tomados por um chauvinismo de
cunho mais esportivo que de outra ordem, alegarão que a grande nau dos
trópicos, hoje, singra mares de prosperidade e de desenvolvimento opulento.
Desse modo, não haveria por que alardear desconhecimento de tantos avanços,
sendo o queixume de Tobias Barreto algo decrépito e anacrônico. Certamente que
a sensação de grandeza territorial infla o tórax contribuindo para que sempre
essa sensação seja delineada pela mentalidade tropical; embora haja
retardamento desenvolvimentista e depauperamento econômico da
população e do erário, a tendência a superestimar as
características locais e nacionais é notória na mentalidade mediana dos
trópicos.
A
sensação de uma grandiosidade soterrada –– de um possível “país do futuro”
observado candidamente pelo escritor Stefan Zweig –– mas que virá a emergir deixa
o brasileiro transido de júbilo, sonhando com mais aspectos grandiosos a serem
descobertos, sejam eles minerais ou esportivos. No entanto, essa elação
nacionalista, por motivos insondáveis, não absorve a concepção de
desenvolvimento cultural e humanístico como substrato para um projeto nacional
consistente. Apostar as fichas, unicamente, no desenvolvimento econômico é o
principal impulso do progresso tupiniquim. Fácil recurso, dotado do mais
simplório psicologismo, seria o de observar a tendência nacional sob a
perspectiva de uma megalomania cultural –– de um delírio coletivo. Não
obstante, certo matiz de grandeza patológica não deve ser desconsiderado, porém
tarefa pouco profícua é a de se empreender uma suposta “análise” da
cultura para efetuar uma diagnose tão vaporosa quanto uma sílfide; também é
plausível supor que o sentimento da grandiosidade brasileira se assemelha ao
comportamento neurótico que, em seu imo, comporta o talhe da dúvida claudicante
que diverge da certeza delirante própria à megalomania psicótica. Em termos
gerais é perceptível que a brasileirada reforce, com veemência, seu sentimento
de grandeza, mas sem dispensar certo quinhão ao bafio da dúvida, da
hesitação que divide.
Sátira
mordaz, a obra “ Os bruzundangas”, de Lima Barreto, retrata o fictício país da
Bruzundanga que em muito se assemelha, jocosamente, às pitorescas terras
tupiniquins. Não se trata de assimilar a briosa nação brasileira a uma
mera pândega carnavalesca, senão através da alegoria satírica transcrever os
infortúnios e debilidades tropicais. O narrador tece considerações a partir de
sua visita ao país imaginário da Bruzundanga encontrando aí anomalias e
patetices dignas de nossa nação. Nas primeiras páginas de sua sátira Lima
Barreto, ao descrever os modos e costumes dos bruzundangos, frisa o júbilo que
eles experimentam ao serem designados por “ doutor”, sendo mais importante o
designativo que a carreira a ser desempenhada –– Nelson Rodrigues também
ressaltaria o êxtase que o brasileiro desfruta ao ser chamado de “ doutor”.
Evidente que se trata de um exemplo menor dos hábitos ordinários de uma
cultura, mas nos pequenos traços é possível entrever características gerias que
a compõem. A sensação de uma grandiosidade, que se manifesta nas miudezas das
relações, evoca mais a preocupação com a forma que com o conteúdo, sendo esse o
sentimento que expande o peito e o orgulho nacional. Que essas expansividades
sejam louváveis não é fato a ser posto em xeque, todavia é inegável que não
frutificam além da mera maquilagem estrutural –– há o odor de uma nação falhada
sob a casca dos ideais etéreos de nossa cultura.
Machado
de Assis em “Teoria do medalhão” descreve, de modo figurativo, o ímpeto
mesquinho das aspirações medianas tupiniquins que encoraja a obstinação por
títulos e posições cômodas para o sucesso mundano em detrimento do espírito e
da inventividade. Em “ Teoria do medalhão” um pai aconselha seu filho a não ter
ideias ou apenas compartilhar as que sejam mais aceitas –– comedimento para
colher os louros do respeito social. O pai diz ao filho: “ Ser medalhão foi o
sonho de minha mocidade”, e enumera conselhos para que o rebento se torne um indicando
o uso da retórica pomposa como meio de convencimento e destaque; ainda prega a
recusa a uma originalidade incômoda –– aconselha, também, o uso de frases
feitas baseadas na mais moderna terminologia científica. O doutor e o medalhão
são figuras que aninam o imaginário nacional de sucesso e respeitabilidade no
qual a forma, a “ retórica de bacharel” e os títulos importam mais que
ventilar novas ideias e o impulso inventivo que proporciona o avanço de uma
civilização.
Curioso
observar como Tobias e Lima Barreto, com base em suas biografias, podem
ser compreendidos sob a figura do intelectual atormentado pelo atraso e banalidades
da inócua mentalidade provinciana nos trópicos; embora Lima Barreto tenha
morado no Rio de Janeiro isso pouco importa, pois a questão não é a de um locus determinado, mas a de uma espécie
de axioma que permeia a formação de uma cultura. Esses geniais autores
sofreram os reveses da vida, de uma sociedade de etéreos valores humanísticos e
da inconstância de uma nação formada pela lassidão de degredados. Para Tristão
de Ataíde, em um ensaio intitulado “ Lima Barreto”, o escritor foi herdeiro de
Machado de Assis e intérprete “dos medíocres, dos apagados, daqueles que passam
como sombras ou como engrenagens, humilhados pela Sociedade, com S maiúsculo, e
indispensáveis a ela”. Em um pequeno ensaio sobre “Numa e a Ninfa”*, romance de
Lima Barreto, o grande crítico literário da terra do saroio, João Ribeiro, louva a notável capacidade descritiva de Lima
Barreto quanto à “ desordem fundamental de nossos costumes”, sendo o escritor
dotado de “observação arguta, de imaginação e de estilo”; não obstante, o grande
crítico literário, também aponte defeitos de acabamento na obra do escritor.
Tobias e Lima Barreto alcançaram, em um tour
de force, notoriedade e cravaram o nome na história, porém permaneceu
em ambos a indignação ferrenha contra o estado de mendicidade espiritual
tupiniquim.
Paisagem (1948) de Jordão de Oliveira
Os
arroubos de grandiosidade da brasileirada –– sua comichão pela patuscada, sua
ausência de valores que ultrapassem o imediatismo da vantagem e do parasitismo
indolente –– formam a base do caráter brasileiro. O rincão provinciano, a
terra do saroio, comporta em seu
microcosmo também características do devaneio nacional. Toda potência quando
não consumada –– a grandiosidade nacional e provinciana seria como uma
assíntota –– amarga os ideais desenvolvimentistas provincianos que pregam
o avanço econômico e estrutural em detrimento do avanço educacional e
humanístico. Outrossim é natural que o estado nanico esbraveje, seja dado a
bravatas, para que compense o apequenamento de seus horizontes e valores.
* Nesse mesmo ensaio, João Ribeiro desabafa: “ No brasil, em quase todos os ramos de vida, o‘arrivismo’ é uma arte consumada e perfeita; sem ela, seria impossível explicar o triunfo e a evidência de indivíduos quase nulos, insignificantes, incultos e ridículos que, entretanto, ocupam as melhores posições”.