Inutilidades provincianas *



          Ante o sonhador inveterado –– que vive o desejo de realizar aquilo que almeja –– não  raramente adotamos um certo esgar de desprezo quando ele não nos apresenta um sonho, um ideal, utilitarista e bem acomodado. Aquele que busca uma profissão que, aparentemente, pode ser pouco rentável é adornado com adjetivos desdenhosos; curiosamente esta ação depreciativa, aplicada ao sonho alheio, pode ser mais facilmente delineada na mesquinhez da vida provinciana.

          Não se trata, neste momento, do sonho como a produção onírica realizada durante o sono –– como psicanalista sou forçado a frisar isso ––senão das aspirações e da vocação que estão plasmadas ao desejo. Caso não houvesse o atrevimento dos pioneiros seria difícil imaginar a arte e especialmente o cinema que tanto demanda em recursos humanos e pecuniários. Na próspera vida provinciana, em sua imbatível qualidade de vida, tudo o que não for necessariamente produtivo e rentável tem ares de diletantismo, não sendo à toa que a produção artística local sofre seus percalços.

          Falando de cinema, o filme Fitzcarraldo, de Werner Herzog, é longo e pode chegar a ser tedioso para alguns, porém esse clássico tem um enredo arrebatador. A película trata do personagem homônimo, Fitzcarraldo, um sonhador inveterado que pretende construir um teatro de ópera, uma casa de ópera, no meio da Amazônia peruana;  o estrangeiro Fitzcarraldo já viera de outras empreitadas malogradas, mas sua paixão pela ópera e pelo legendário tenor Caruso o entorpecem a ponto de ele mover tudo para concretizar seu desejo. Fitzcarraldo, em seu sonho tresloucado, enfrenta a rude elite provinciana da borracha –– abastada, porém inculta e vulgar ––  que desdenha das pretensões inoportunas do nosso anti-herói; reservando-lhe, ainda, a pecha de “ O conquistador do inútil”. Decerto que os empreendimentos do protagonista são descabidos para a realidade e a mentalidade encontradas na abissal floresta peruana, contudo a chama que anima o lunático personagem é a de grandes realizações, a do pionerismo que embora seja insano, aos olhos do presente, depois poderá vir a ser considerado tradição ou caráter precursor.

          Sem o ímpeto descabido de alguns visionários como teríamos concretizado as viagens espaciais e o cinema ? Em uma provinciana capital, que se orgulha  de seu progresso e expansão, os sonhadores visionários são escassos; fagulhas que devem resistir à gelida consideração provinciana quanto ao que é artístico ou inventivo,  mas sem utilidade pragmática e rentabilidade imediata. Claro, que os provincianos julgam necessário uma regular e ululante atenção à produção artística.  Aos filhos da boa classe média, era quase que impelida a escolha  entre duas ou três profissões consideradas mais promissoras e seguras; as carreiras profissionais restantes pareciam reservadas a aventureiros dignos de um safári e da descida ao limbo das aspirações burguesas. Sabemos que nossa cultura não preza a vocação e seu chamado, senão caso essa esteja adequada ao sonho da classe média –– se esta coincidência transcendental ocorre temos um indivíduo premiado pelo destino. Ademais, restará a frustração vocacional bem remunerada e assegurada, mas com o poder transformador do talento soterrado…

          Verdade que em nossas plagas vemos pouco da criatividade inventiva que produz algo novo; talvez porque  a vocação e o ímpeto visionário sucumbam perante a mesquinhez do imediatismo e  a ausência de ideais humanísticos em nossa cultura. Outro filme, o premiado Pequena Miss sunshine,  evoca também a questão da importância da realização dos sonhos mesmo que esses se mostrem momentâneos e fugazes como são os da pequena Olive que deseja vencer um concurso de beleza infantil. Evidente que há ali uma sátira mordaz aos  concursos de beleza infantil atuais que querem apresentar as crianças transformadas em pequenos adultos bizarros, contudo o que há de tocante nesta película reside no fato de vermos uma família em crise –– cujos os membros seriam cruelmente chamados, pelos americanos, de losers –– fazer o possível para viabilizar o sonho de Olive.

O que parece mais comovente e encantador nesse filme é o respeito pelo sonho alheio, pelo sonho de uma criança; mesmo que o sonho infantil, sua fantasia, seja tragado pela voraz ordem consumista moderna, sua essência continuará a pulsar na alegria e na celebração da inventividade infantil  –– talvez esteja aí o segredo da Pequena miss sunshine.

Fitzcarraldo  luta e acredita, de modo infantil, nos seus sonhos tanto que desconsidera os entraves e limitações da realidade. Bukowski, o escritor americano beberrão, dizia que nada era mais chato do que a realidade; possivelmente se referia  aos entraves que ela nos apresenta diante do que desejamos. Freud, ao falar  da atividade onírica durante o sono, asseverou que o sonho era a via régia para a realização do desejo, pois quando sonhamos, durante o sono, a realidade é amplamente deformada a favor do desejo inconsciente.

No entanto, a realidade nunca foi um empecilho aos visionários; Fitzcarraldo aposta nisso e materializa, a seu modo, o sonho de levar a ópera aos confins da Amazônia peruana, superando a soberba da elite provinciana que apenas considerava êxito tudo o que gerasse lucro material e poder. Difícil entender, mas parece que não existe “ escolha” para Fitzcarraldo, pois  o seu desejo flui –– rebenta de qualquer maneira. Considerar desenvolvimento e progresso em bases meramente monetárias, desprezando o avanço social, educacional e humanístico, é uma forma de sustentar a mentalidade de mero exportador de bananas.  

 

*Crônica publicada no Cinform online em dezembro de 2011.



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