Neste país de bárbaros, disse, esse
mar não é de rosas. Neste país de proprietários rurais, disse, a literatura é
uma raridade, e não tem mérito o saber ler.
Roberto
Bolaño, Noturno do Chile
Entediante o ativismo virtual e sua
virulência etérea, fugaz, destinada ao combate de preconceitos em prol de
qualquer causa socialmente apreciada. Nobre deve ser a sensação que o ativista,
de rede sociais e passeatas festivas, tem ao desferir golpes contra o “sistema”
e contra os mais abjetos movimentos reacionários que ultrajam minorias ––
louváveis ideais que podem ser, ardentemente, defendidos sem arriscar uma libra
de carne. Em contrapartida, é preciso reconhecer que o compartilhamento virtual
( em redes sociais, e-mail etc) se apresenta como uma forma de interação social
e divulgação de informação e de conhecimento.
Este ano, a carola deputada Myrian Rios
conseguiu que seu projeto de lei –– que
institui o “Programa de resgate a valores morais, sociais, éticos e espirituais”
–– fosse sancionado pelo governador do Rio de Janeiro; a lei da deputada
requerente apresenta um caráter subjetivista que pretende fortalecer os valores
familiares e as relações humanas; essa lei e sua consistência silfídica,
vaporosa, apontam o recrudescimento de um moralismo decrépito; tentativa caduca
de regular o mal-estar gerado pelo hedonismo superficial da era do hiperconsumo.
A proposta da deputada visa a um nobre fim: o de “prevenir e combater diversas
formas de violência”; porém não define suas ações e o método de sua aplicação.
O posicionamento conservador de Myrian Rios, e de sua ordem religiosa, logo
gerou a ação policialesca dos furibundos libertários de botequim que não se
furtam a esbravejar contra o que temem ser um retorno de certa repressão seja
ela física ou ideológica; esquecem os libertários de botequim –– estes
paladinos de ideais longínquos –– que a atitude radical deles funda um discurso
sobretudo frágil, embora autoritário em suas manifestações. O discurso desses
paladinos é frágil na medida em que não há um estatuto ideológico preciso que
os norteie, apenas bradam frases prontas, máximas impactantes, que ouviram em
meios universitários e em bares descolados; culpam, de modo impreciso, as elites hegemônicas, o
imperialismo yankee etc. No entanto,
os paladinos de ideais longínquos não rejeitam a ajuda monetária e logística do
“sistema” para empreender sua defesa de grupos minoritários; assim caminham
para forjar um “moralismo” extremista que também irá reprimir social e
judicialmente os opositores. Há libertários de botequim que consideram o
revanchismo minoritário como legítimo –– troco para uma opressão histórica. Em
favor da revanche minoritária o humanismo e a moderação, esta excelência moral aristotélica, são desconsiderados; o oposto dessa excelência
seria a concupiscência, sendo esta a
paixão que parece soprar tanto no âmago de grupos conservadores quanto de grupos
radicais minoritários –– as ações de ambos mascaram a cobiça pelo poder.
Embora Aristóteles enfoque, em sua Ética
a Nicômaco, a moderação e a concupiscência mais em termos de apetite
fisiológico é possível aproximá-las da disposição psicológica própria a estados
subjetivos do agir humano. Ambas estão circunscritas, por Aristóteles, entre o
tato e o paladar, e por isso não deixam de afirmar algo em relação à incorporação
e à posse.
A atitude retrógrada da deputada, e de seu
grupo católico, possivelmente é fruto de uma consideração política e moral da ética cristã, que procura encontrar brechas
para se enfronhar em uma sociedade incomodada com seus frágeis valores. Evidente que Myrian Rios e
seu grupo se opõem a tudo que for secular na moral, na educação etc. Querem
eles impor sua estreita visão de mundo,
todavia aqueles libertários –– que apenas pensam sob a bitola universitária –– agem
da mesma maneira intransigente. Lamentavelmente, a turma libertária radical
adota manifestações grosseiras e inflexíveis em prol da defesa de quaisquer
grupos minoritários; criticam a arrogância prescritiva dos opositores, porém se
tornam opressores ao querer impor sua perspectiva alternativa das relações
sociais. A liberdade e as garantias individuais devem ser defendidas sem
tergiversações, evitando, contudo, uma atitude impositiva dos grupos oprimidos.
Não é à toa que as diferenças incomodam o
espírito humano; a intolerância remarca a incapacidade de se aceitar o prazer e
a realização do próximo. Em sua Epístola
aos romanos, Paulo de Tarso afirmou
que o pecado não poderia ser imputado salvo pela instituição da lei que o
delimitasse; o psicanalista Jacques Lacan retoma esta concepção paulina para
delinear a ligação entre desejo e lei, pois psiquicamente o que se deseja seria
fundado após a interdição de uma lei no âmbito do limite entre o eu interno do sujeito e o mundo externo.
Clinicamente se observa que o limite externo e interno não estão dissociados,
senão o descompasso psíquico ficará evidente nas psicoses e suas manifestações.
Talvez seja impossível imaginar uma civilização sem preceitos éticos e morais;
grande parte do mal-estar da sociedade high
tech se deve à dissolução dos valores
familiares e sociais de outrora que foram suplantados por medidas
comportamentais e médicas excessivamente padronizadas e pelo consumo incessante
como via de obtenção de felicidade e realização pessoal.
O ímpeto moralista de grupos religiosos e
de movimentos políticos laicos radicais deve ser observado e debatido, pelos
meios intelectuais e políticos, em uma sociedade que busca ter garantias
individuais asseguradas sem extremismos. No entanto, na barafunda tropical as discussões
culturais e éticas aprofundadas são
entendidas como perda de tempo, preciosismo, ante um promissor futuro que os
néscios e os entusiastas da grandeza nacional acreditam já haver chegado.
____________
* Texto já publicado no portal Notíciasaju; escrevo quinzenalmente para este portal.
link: http://www.noticiasaju.com.br/
0 comentários: