Anotações rasteiras sobre a avareza*





Tomar a teimosia e a avareza estes dois traços de caráter ou “defeitos” de caráter –– como ainda acrescentou  Freud –– não significa seguir a via de uma clínica do comportamento, pois ambas não são novas afecções psíquicas a serem diagnosticadas sob nova nomenclatura de síndromes e transtornos psiquiátricos. Esses traços (de personalidade), sintomáticos, podem atormentar o sujeito, mas também revelam algo de sua constituição psíquica –– além de servirem a um ensaio ligeiro.

Importa mais saber o que esses traços revelam acerca da pessoa; isso quando um avarento se dispuser a custear uma análise, pois o objetivo dele é o de reter; de não doar o que julga seu por direito, sofrendo toda vez que sente sua bolsa subtraída. Nenhum sintoma –– ainda mais um traço de caráter –– não surge repentinamente, talvez nenhuma doença surja do nada, da cartola. No entanto, difícil é vencer a ignorância quanto ao que se desconhece em si mesmo, predominando o recurso à medicalização excessiva e medidas   comportamentais, com acento higienista, que achatam  a subjetividade.

A teimosia, base para a avareza, deve ser lida como obstinação em guardar para si; fato que na tenra infância adquire mais o sentido lógico que cronológico para a formação do psiquismo. Comum que esses dois traços( ou defeitos) estejam presentes na neurose obsessiva hoje mais conhecida por toc (transtorno obsessivo compulsivo) e suas variáveis clínicas. A obstinação em reter os objetos para si é delineada no mais primitivo da infância do sujeito, o qual primeiramente vai reter seus objetos –– o que Freud observou  como o que for “presente” dado à criança; apenas depois, a retenção de objetos e presentes seria deslocada para o dinheiro. Devemos considerar que um traço de caráter tem, em um adulto, as raízes fincadas em seu psiquismo além da simples formação eventual de sintomas comportamentais. Outrossim, na avareza, há o deslocamento da retenção psíquica primitiva dos objetos para o dinheiro, sendo que a teimosia( obstinação) –– que forma a base egoísta, narcísica, dessa retenção –– é amorosa em seu cerne. Há nesse aspecto amoroso da retenção, uma erotização primeira que se distingue, precisamente, da genitalidade sexista, mas que aponta para o investimento de amor e ódio que a criança faz em seus  pais e objetos.

A avareza é tema secular na literatura e no teatro, sendo talvez a peça, a comédia “ O avarento” de Molière o exemplo mais direto. Remarque-se que essa peça do autor foi inspirada na comédia “Aulularia” de Plauto, autor latino, escrita no século 100 a.C.; e ambas trazem um avarento como protagonista. Na comédia de Molière, Harpagão, personagem principal, utiliza sua astúcia para preservar sua fortuna. O tom dado à personagem beira o ridículo, a histrionice, embora aja com perfídia e puro egoísmo. Harpagão, mesquinho e sovina, acusa sua família e as demais pessoas de só pensarem em dinheiro; porém, pela sutil ironia da farsa, é perceptível seu blefe para ludibriar a todos.  Ainda na peça, há o notório sofrimento do protagonista ao ter que dar alguma coisa à família e, também, quando sua “caixinha” de economias  –– que estava enterrada no jardim de sua casa –– é repentinamente furtada. Ao perder o objeto “dinheiro” é como se estivesse perdendo parte de seu corpo e de seu eu (ego), pois ao descobrir o furto declara que se sente “perdido, assassinado e com a garganta cortada”. Episódio curioso acontece em outra comédia –– “O mercador de Veneza” de Shakespeare ––– ao mesquinho agiota Shylock que cobra “ uma libra de carne” a Antônio por uma dívida, mas  é o credor malévolo quem acaba perdendo seus bens, seu ouro.  

De modo paradoxal, o avarento encontra um átimo de alívio para sua eterna vigilância quando sua bolsa é furtada, pois seu constante investimento de energia psíquica no ato de reter e economizar tende a sobrecarregá-lo de maneira extenuante; então entraria o outro como usurpador que o avarento não poderia haver previsto. Talvez sua irascibilidade, ante a perda de sua bolsa, funcione como descarga em seu psiquismo para a tensão contínua de sua retenção; porém esta suposição deve ser clinicamente verificada na história de cada sujeito. As generalizações clínicas devem sempre ser submetidas à escuta de cada paciente. 

Romance lapidar -–– que tem a avareza por tema ––- é “Eugénie Grandet” de Balzac, no qual o Sr. Grandet, sumo avaro, impõe a sua família uma vida espartana e frugal, não obstante tenha posses; o Sr. Grandet parece economizar tudo, até seus movimentos, como descreve o autor. A concupiscência do Sr.  Grandet se mostra idêntica à de Harpagão; ambos insinuam uma quase fusão com o objeto amado, o dinheiro, visando a que o tenham junto a si; porém é uma relação sempre ameaçada e que quantia alguma traria completude. O personagem do romance possui um quarto fechado em sua casa onde guarda seu ouro, seu dinheiro, para preservá-lo, e ter o objeto de seu egoísmo fisicamente próximo, pois não confia nem em bancos, enquanto que Harpagão tinha sua “caixinha” enterrada em seu jardim. Na avareza parece haver a  atitude infantil de ter os objetos perto, sob a vista, temendo que eles sejam furtados; relevante notar o fato de a avareza figurar mais em comédias, talvez devido a algo de infantil que ressalta o caráter ridículo, tragicômico, do avarento e seu sofrimento. Em sua mise en scène, o sovina apresenta certo deboche, blefe risível, que se adapta bem ao tom da farsa, ao gênero da comédia.    

Livres dos riscos de psicanalisar obras e personagens –– e tendo a psicanálise como devedora da arte –– podemos, senão, apreender e captar evidências neles que nos sirvam como um norteador clínico para estudo. Assim, o avarento, o somítico, em sua teimosia (obstinação), ensina o que de  infantil e primevo há no comportamento neurótico embora esteja deslocado para o dinheiro na atitude tenaz de preservá-lo. A relação quase perversa do avarento com seu dinheiro, sua “caixinha”, está longe de ser pacífica e sem sofrimento; parece marcada por um suposto  e claudicante imperativo interior que ele não pode negligenciar em momento algum –– Balzac descreve o ímpeto do Sr. Grandet para tudo economizar. E o avarento economiza tudo para si: amor, objetos e dinheiro.
    


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       * Ensaio publicado em minha coluna no portal Notíciasaju





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