Higienismo novo¹



                                          
                                                 “Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato”*

                                                 “ Foi a partir do meu lado moral, e em meu próprio ser, que aprendi a reconhecer a completa e primitiva dualidade do homem”**

     A era tecnológica nos apresenta uma versão nova para um dos filhotes do liberalismo: o higienismo. Ideal flamejante que prega uma vida saudável –– “ aprenda a ser saudável”–– eis o lema apresentado em um site sobre o higienismo novo e sua “economia do organismo”;  seus gurus, blindados sob a égide do discurso médico-científico, promulgam os ditames de um bem-estar inefável, eufórico, através da prática de uma “vida correta”,  livre de  excessos.

    Evidente que excessos químicos, alimentares etc podem causar danos ao organismo. Porém, esquadrinhar e impor um padrão para ser saudável força que a individualidade seja tomada quase como fato patognomônico, desvio da “vida correta”. Os sites que versam sobre o novo higienismo propõem preceitos padronizados para a alimentação, sexualidade, longevidade etc;  talvez chegarão a “patologizar” a grafugem e sua incidência.

   O higienismo novo condena o que julga como “ vida incorreta” e seus excessos  maléficos; intuito sublime que cai na esparrela de almejar uma catalogação inequívoca do nocivo para a suposta “ vida saudável”. Ditadura da saúde que nos impele a uma “ hipoteca somática”  para que seu programa se concretize.

   As regras emanadas dessa ditadura amortecem o peso, a marca, da subjetividade e do caráter psicossomático das afecções­­­ –– há indivíduos fumantes que não padecem das nefastas complicações oriundas do tabagismo. O padecer do corpo não está alijado do azedume provocado por rancores e mágoas ­­–– um estado de ânimo irritadiço ou saturnino pode aluir a pretensa máquina somática treinada conforme o ideário higienista.

  –– Cultivem o humor correto! –– diriam os paladinos de certa correção comportamental. Emitir mensagens edificantes pasteurizadas para a vida alheia já é fato contumaz para comadres e alcoviteiras. Árduo é tratar com deferência a angústia que habita o plexo solar de cada um.

   O furor sanandi do higienismo anatematiza o que considera  extravagâncias, desleixos,  que conduzem à afecções. Cria-se, então,  uma pretensa assepsia no agir humano, postulando os malefícios tenebrosos do tabagismo, do consumo de bebidas alcoólicas ( diferente do alcoolismo, a doença), da cafeína, do consumo de alimentos gordurosos etc; busca-se uma medida derradeira de saúde.

  O atual ideal de saúde vislumbra um homem regulado pelos ditames da vida saudável –– mas pouco implicado em seu questionamento existencial –– pois refugia-se em gadgets, psicotrópicos e em regras estanques de boa saúde para o corpo. Eis o homem moderno seguro de suas aspirações, fazendo seu cooper  cronometrado e ingerindo suas vitaminas precisamente prescritas –– caminhando para se tornar um vigoroso homem centenário, mas néscio em relação a seu ser.

   A felicidade, átimo de satisfação,  continua a ser anelada como um bibelô que se deveria ter sempre à disposição, contudo em instantes se torna enfadonho manuseá-lo, daí busca-se outra coisa –– infindável procura. Difícil suportar  a felicidade como naturalmente episódica em um mundo de esplendor tecnológico e seus gadgets inebriantes. Por que, então, anatomizar o que está no imo, saber de si? A saudável resposta moderna  pretende vicejar um indivíduo em homeostase (parado), sem pecadilhos, sem a asperidade dos conflitos subjetivos.

  Entre o cooper adestrado, receitas de vida saudável, ansiolíticos e festas incessantes e  obrigatórias para a manutenção de uma alegria pavonesca, está a subjetividade solapada. Mas o que ocorrerá quando aquela mutuca, a angústia, emergir no plexo solar ? O higienismo novo e o comportamentalismo inequívoco, a partir de seus rutilantes ideais, responderão: “ mantenham-se saudáveis, correção !”. Porém, as brumas da existência certamente tornarão a aparecer independente dos recursos empregados para dissipá-las. 

    A infância de outrora podia ser endiabrada, levada; o termo “hiperativo” seria anacrônico. Hoje, crianças depressivas ou ansiosas são medicalizadas e “psicologizadas” de modo canhestro –– embora cientificamente  legitimado –– como se de alguma maneira a ação medicalizante (e comportamental)  devesse reparar  a atual transmissão claudicante de valores familiares e limites sociais. Desse modo, procurando não apenas sanar desordens orgânicas e psíquicas, mas também o mal-estar social provocado pelos indivíduos desviantes. Evidente que há quadros severos de ansiedade e hiperatividade, no infante, que necessitam de acompanhamento médico e psicológico. Mas será que passamos a uma patologização generalizada do que se julga como desviante? Pergunta incômoda a ser feita durante o cafezinho vespertino. Mas aproveitemos enquanto ele ainda não nos é regulado. Porém, a  indagação não tenciona meramente pasquinar os ideais da saúde moderna.

   O admirável higienismo novo avança mediante seu sobranceiro labor de empreender a economia do corpo e da mente, sendo os conflitos da subjetividade assunto de pouca monta. Contudo, sempre haverá um sujeito hamletiano em sua angústia tonitruante.

1- Crônica publicada no Cinform Online em outubro de 2010
* Máxima atribuída a Aparício Torelly, o Barão de Itararé, humorista e jornalista.
** R. L. Stevenson em “ O médico e o monstro”( The strange case of Dr. Jekill and Mr. Hyde)

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