O crack¹ das relações*


O crack¹ das relações

 A crescente presença do crack, e seu novo subproduto o oxi, gera o dilaceramento de famílias e um profundo incômodo social. Há algum tempo, a manchete de uma grande revista nacional expunha a tragédia das famílias ante filhos tragados pela poderosa droga. Na matéria de capa, uma mãe comentava que não sabia o  que havia levado sua filha a se tornar dependente da poderosa droga, o crack, já que “ela havia estudado em escola particular, fazia faculdade e tinha carro”, ––– porém é difícil entender como estes fatores poderiam manter, decisivamente, alguém afastado da dependência.

Em nenhum momento, na matéria citada, a questão das relações familiares foi posta em xeque; o que parece terrível na reportagem é que o crack tenha se alastrado pela classe média que, aparentemente, deveria estar imune a uma droga tão pestilenta, pois seus filhos foram criados em boas escolas e playgrounds. A emblemática fala dessa mãe revela  alguma faceta do discurso, lugar comum, da classe média brasileira que aposta mais no consumismo  e na repetição maçante de informação como garantias de  equilíbrio e bom senso.   A aflição da classe média, sua corda bamba, está entre sua possível ascensão social ou a bancarrota pessoal; então quando sua prole escapa ao esplendor de um futuro marcado por escolas particulares e os benefícios do consumo, o mal-estar se instaura.  Um notório infortúnio gerado pelo dependente químico é o seu desapreço pelos valores sociais e seu desprezo pela questão produtiva; o viciado, em estado grave de dependência, deixa o trabalho, abandona os  laços familiares e sociais.

O crack impele o sujeito ao consumo frenético e, ironicamente, vivemos uma era de consumo incessante de objetos. Essa droga manufaturada, ––– ventilemos esta hipótese ––– parece encarnar o sintoma de uma sociedade ávida pela aquisição de objetos e informação; possivelmente o infame discurso “politicamente correto” seja uma tentativa canhestra de purgar os excessos de nossa sociedade. A atividade policialesca da turma do “politicamente correto” exige uma correção do espírito e do corpo almejando um sujeito apático e muito chato. Então, medidas profiláticas são despejadas, através da mídia, sobre diversos temas; cada vez se torna mais comum vermos programas televisivos nos quais essas medidas são ditadas. Consultam-se médicos, psicólogos e nutricionistas acerca de qualquer tema: comer chocolate, tomar cafezinho, uso de celular e games, dar ou não palmadas nas crianças etc.  A sociedade parece  confusa quanto ao limite e bom senso; e para remediar necessita de regras que ordenem as relações, a alimentação, a educação etc.

 Por exemplo, a hiperatividade infantil passou a ser medicalizada e lida por psicologismos, mas o que pode estar ocorrendo na vida da criança com seus pais e em seu meio tende a ser solapado pela medicação e por diretrizes comportamentais.  Talvez, aqui, voltemos a fala da mãe a respeito de sua filha usuária de crack, que estarrecida, indaga-se como sua filha –-––  que não passou por privações materiais ––– pôde se tornar dependente de droga, doente de droga e deslocada socialmente. O dependente grave é condenado a um modo particular de gozar a vida;  suas relações e atividades habituais ficam devendo à completude que o dependente encontra no seu vício e assim ele se desvencilha de valores e das relações. 

 A  banalidade da violência e a ruptura de valores demonstram, provavelmente,  certa dissolução da lei, do limite e do bom senso e daí a necessidade excessiva de diretrizes médicas e comportamentais. Ante o bizarro crime ocorrido, em 2011, na escola em Realengo (Rio de Janeiro) a mídia clamou por uma causa para aquele ato nefasto e os telejornais pareciam tomados pelo ímpeto de examinar, esquadrinhar, o que motivou o crime.  Colocaram em pauta se o que ocorreu naquela escola deveria ser contado às crianças ou não, ––– possivelmente alguns pais devem ter enviado e-mails para saber se contavam ou não aos filhos. Não devemos nos poupar quanto ao que é trágico e tétrico, pois tanto o indivíduo quanto uma civilização avançam a partir de seus erros.

Já quiseram condenar os games como causa da agressividade juvenil, depois surgiu alguma pesquisa de qualquer respeitável universidade americana postulando que os games canalizam, desopilam, a agressividade. Parece tolo este exemplo, mas houve época em que o videogame ganhou ares de vilão do bom comportamento juvenil. Antes houvera o rock n’ roll e o temível corruptor de hordas juvenis: o  onanismo.   

Após eleger o algoz, o vilão, sobrevém breve alívio ao mal-estar experimentado pela sociedade, mas, à surdina, o incômodo torna a crescer e aparecerá como aberração ou sintoma do que não se suporta reconhecer. E novos vilões serão fustigados pelo psicologismo televisivo. As investidas do fatigado  discurso politicamente correto buscam eliminar o que de desviante e podre há em qualquer sociedade; e as regras pululam  como forma de sanear a difícil convivência moderna.

Há cinco anos trabalho com um grupo terapêutico ( psicoterapia de grupo) de dependentes químicos, sobretudo alcoolistas; e agora, mais que nunca, julgo impossível forçar o dependente químico a se tratar, a largar o uso. O trabalho é árduo, pois devemos considerar que a droga tem uma função de suplência na economia psíquica do sujeito dependente e que  ela  não vai ser, simplesmente, removida por repreensões ou considerações utilitaristas de saúde.  Desse modo, mesmo que haja um padrão no trabalho em grupo, cada usuário deve ter sua história pessoal considerada e que a equipe coordenadora suporte as recaídas e infortúnios do percurso de cada usuário no grupo terapêutico.

Regras e restrições excessivas, totalitaristas, nunca suprimiram a subversão e a capacidade de sonhar ––– manifestações reativas ao achatamento das paixões e da singularidade.

E se o crack for mais uma pústula social, sinal de tropeço nas relações, ocaso do esplêndido desenvolvimento moderno?



¹ Crack, em inglês, significa também quebra, ruptura etc
* Crônica publicada no Cinform Online em 2011.

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