O nariz da imagem*


          Qualquer indivíduo revida e dificilmente olvida o mínimo ataque  à sua imagem; árduo tolerar o comentário áspero ou meramente jocoso que pode versa sobre o aspecto do traje ou idiossincrasias sabidas pelo indivíduo. O comentário alheio pode ser dura alfinetada na imagem que se carrega de si -–– um olhar de soslaio do inimigo cordial pode ser suficiente para tornar o dia mais amargo. 

Raramente, o ofendido se furtará a emitir contragolpes, mediante a pedra ou o verbo,  que atinjam  o algoz ou tombem em suas próprias entranhas. Curioso observar que o mais cândido octogenário, após se aborrecer com sua indolente “secretária”, toma o comportamento dessa como puro acinte, esbravejando como um rude carroceiro  enfurecido, –-- uma leve observação crítica, de uma comadre, quanto à combinação entre o vestido e os acessórios pode exasperar a mais garbosa e coquete das senhoras.  

          Mas por que o mínimo ataque à imagem gera a agressividade? Seria uma atavismo oriundo da aurora da espécie? Tenho, aqui, o direito a floreios –––– a pavonear o texto ––– e a versar sobre o tema  a partir da perspectiva da clínica psicanalítica com a qual não posso tergiversar. Primeiro, é válido marcar que a imagem que cada um tem de si é formada nas relações com o universo familiar e social, a imagem seria uma espécie de protoeu, lembrando que Freud dissera que o ego (o eu) é essencialmente imaginário e corporal. Uma criança pequena, quando apanha, por vezes não sabe se ela bateu ou apanhou, pois observamos que sua estruturação egóica ( e cognitiva) ainda não se estruturou. A agressividade é resposta brusca, primitiva, aos arranhões na imagem e posteriormente ao peso do mundo externo sob o ego (Eu). 
          Antes que o farisaísmo objete os constructos psicanalíticos, vale marcar, de modo diferencial, que a esquizofrenia apresenta frágil ou quase pulverizada imagem de si, bem atestada pelos inúmeros fenômenos presentes em sua clínica ou em um bom livro de psicopatologia. A observação detida revelará a diferença existente entre a estruturação da imagem e do corpo, por exemplo, em quadros fóbicos, neuróticos  e em quadros esquizofrênicos. Comum escutar, em hospitais psiquiátricos, esquizofrênicos (psicóticos) relatarem que sentem coisas dentro de seus corpos, a sensação de estar “ se desmontando”, a vívida percepção  de ter um “buraco em sua cabeça” etc. Certa vez  um paciente psicótico me confessara calmo, –– o que um neurótico dificilmente o faria –– que ao “assistir a missa” e contemplar a figura do cristo crucificado julgara, meu paciente,  que ele poderia ser o próprio Messias; o exemplo clínico atesta a natural confusão da imagem presente de maneira clara nos quadros esquizofrênicos.    

          Os abalos à imagem podem ser pequenas agulhadas diárias ou devastadoras como na perda de um membro, não sendo raro o indivíduo sentir  a parte do corpo perdida ( “ dor fantasma” ) mesmo após meses e até relatar que sonha que o membro perdido voltou ao lugar. Um exemplo satírico que a literatura nos oferecer é o “ Nariz”  de Nikolai Gógol, escritor russo; nesta novela o personagem, um funcionário público, o Major Kovaliov  repentinamente perde seu nariz e passa a temer os reveses que iria sofrer em suas relações, pois conclui que melhor teria sido a perda de um braço, mas a do nariz traria sérios danos a sua imagem em suas relações; não era uma mera preocupação em tê-lo para apoiar  o pince-nez. O orgulhoso “assessor de colegiado” Kovaliov empreende uma patusca jornada pelas ruas de São Petersburgo, cidade russa, até reaver seu precioso nariz. A psicanálise não deve se arvorar na posição de decifradora da arte, mas antes ficar atenta ao que da arte pode sorver como possível ilustração clínica; na novela de Gógol é notória a mudança causada à imagem de nosso herói após a perda do seu nariz afetando sua confiança e posição ante as pessoas; além das reações agressivas do voluntarioso personagem. 

          Imaginemos, em nossa próspera província, potestades mundanas e briosos colunáveis sofrendo pela falta do nariz; como iriam ilustrar as colunas sociais em domingos ensolarados?  


* Crônica publicada no Cinform Online

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