Não há depressão em colunáveis



Mas no mundo não há nada duradouro, e por isso, a alegria no minuto seguinte já não é tão viva como no primeiro; no terceiro minuto ela se torna ainda mais fraca, e por fim se funde imperceptivelmente com o estado habitual da alma, como o círculo formado na água pela queda de pedra acaba se fundindo com a superfície plana. 
                                   Nikolai Gógol, O nariz

Certamente que flanar por solenidades e badalações é uma forma inequívoca de fruir a vida e evitar o agastamento de um quotidiano ordinário. Entre canapés, sorrisos marmóreos e champagne a vida segue menos biliosa  e sobretudo menos belicosa; porém os sobressaltos do peito opresso pela angústia tendem ainda a amargar a frenética vida moderna ––– os dissabores da existência não são totalmente soterrados por psicotrópicos, pelo consumismo compulsivo e pelos ideais de uma suposta saúde total. 

A indolência tropical combina bem com o véu lançado sobre as questões subjetivas; como se a vida pudesse ser narrada em bulas e notas fiscais sob a sombra dos coqueiros na capital da qualidade de vida; e essa pecha de “ a capital da qualidade de vida”  edulcora o olhar do transeunte, do cidadão que fica arquejante diante das maravilhas de sua terra. A classe média provinciana e tropical aposta suas fichas no crescimento do consumo e na maquilagem urbanística, dos nichos que habita, como garantias de prosperidade social; entretanto a pujança asséptica de suas edificações não dissipa o bafio da penúria andarilha que estende a mão em sinais, em esquinas. Devido a algum mistério insondável, a mentalidade tropical confunde desenvolvimento monetário e estrutural com desenvolvimento humano; confunde cidadania e cultura com uma educação meramente informativa e mercadológica. 

As redes sociais possibilitaram a notoriedade fugaz  do anônimo; nelas podem ser expostas recordações de viagens, anseios e até momentos crepusculares que ocorram aos colunáveis anônimos. Que as redes sociais estabeleceram novas possibilidades de relacionamento, de compartilhar informações e cultura, ciberativismo etc ––– isso já é sabido; e seria tolice condenar uma ferramenta por quem faz uso dela. Também  seria  tolice adotar um sentimento ludista contra a enxurrada de quinquilharias high tech e  novidades virtuais. Fato é que o indivíduo circundado por essas quinquilharias (gadgets) tende a se entorpecer num frenesi consumista e festivo, sendo mais joguete de demandas e oscilações econômicas e sociais que detentor de alguma autonomia interior.

Quando algo angustiante, subjetivo, invade a órbita das aspirações padronizadas do indivíduo moderno, ele teme enlouquecer e, de imediato, busca que seus pesares, sua angústia, sejam lidos por médicos, psicólogos etc. O pavor de abandonar certo comodismo existencial move o indivíduo para a procura de diagnósticos e psicofármacos que o reconduzam ao que considera o eixo normal. Em uma conferência, cheia de verve, sobre o budismo, o escritor argentino Jorge Luís Borges considera que a cultura ocidental tende a ter dificuldade em captar o budismo por enfatizar o “compreender” em detrimento do sentir; e que por isso a apreensão do budismo exigiria muito de nossa fé, na opinião de Borges. 

Mas o que esta referência tem a ver com o que foi até agora exposto? O movimento do indivíduo moderno parece ser o de querer “ compreender”, ansiando por explicações médicas e comportamentais totalizantes  para o mal-estar que porventura venha a visitar sua consciência; também, tornou-se comum o impulso midíatico em explicar, em isolar patologicamente, crimes bárbaros a partir de reflexões pueris que acalmem o incômodo gerado ––– justificativas superficiais e até melífluas contribuem para que a badalação contemporânea mantenha seu passo eufórico, dançando à beira do abismo da depressão, o mal do século.    

Longe da ingênua intenção de desmerecer o tratamento medicamentoso, que em determinados quadros depressivos, de ansiedade e psicóticos, por exemplo, é de suma importância; a questão se faz quanto à necessidade de nomeação diagnóstica ––– tão frenética quanto o mais esfuziante consumismo ––– que tende a suprimir qualquer questionamento subjetivo.  Não raro, indivíduos diante de uma perda amorosa, uma separação difícil, veem sua disposição para se relacionar, consumir e produzir afetada devido ao luto provocado pelo término; e assim, meio enlouquecidos, com a queda dessa disposição, correm para que seu sofrimento seja apenas suplantado por medicamentos e medidas comportamentais que visam ao treinamento das reações tidas como saudáveis ante os conflitos. 

Em um consultório de psicanálise, ao tomarmos certa analogia livre com o que foi aqui referido ao budismo, podemos observar que o paciente, em análise, vislumbra a disjunção entre “ compreender” e “sentir”, saber de si; ao invés de ansiar, sofregamente, pela compreensão alheia, seja científica ou fraternal ele poderá obter algum saber sobre si, sobre seu sofrimento, descolando esse das injunções familiares e sociais –– o que culmina em certa autonomia interior difícil de ser forjada por meras garantias externas. Não confundamos, porém, essa autonomia com um desprendimento búdico, pois a psicanálise não é um tipo de ascese, mas a análise pode levar o sujeito neurótico a uma posição subjetiva mais despreendida –– isso não significa, contudo, que a psicanálise seja um meio profilático ou recurso derradeiro para o sofrimento psíquico. 

Por fim, entre uma taça e outra de espumante, entre a catalogação de festas e o anseio por novas aquisições, estará o acicate da angústia irrompendo na consciência para avisar que há o inconsciente, embora considerado “doença” e não parte do ser e de suas paixões. Mas o inconsciente se faz presente como impasse, aporia, entre o psiquismo e o corpo; e isso incomoda o objetivo de um suposto auto-controle total ––– de uma homeostase sem solavancos existenciais.

* Texto publicado no Cinform Online em 2011

1 comentários:

  • Anônimo | 6 de fevereiro de 2012 às 01:59

    Fiquei muito feliz com a sua retomada ao mundo de "publicações virtuais"! Seus textos merecem espaços compatíveis com a grandiosidade deles! Que este blog viva por muito tempo e permita que outras portas se abram!

    * p.s.: Adorei o design do blog. Marvin está mais uma vez de parabéns!

    Beijos. Regina.

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