O Ciúme do Coração *




Semana passada fui procurado para opinar, como clínico, sobre o horrendo caso do alagoano que, furibundo, arrancou as vísceras de sua companheira e, por fim, assou e comeu seu coração. De pronto, respondi ao meu interlocutor que não poderia apresentar um diagnóstico diante das poucas informações que possuía sobre este crime bizarro. No entanto, o mal-estar produzido por um crime dessa natureza provoca o anseio geral por explicações e algo que encerre o ato monstruoso e seu executor em um diagnóstico que isole sua anormalidade.

O agressor declarou –– na matéria de capa do Cinform da semana passada –– que havia ficado com muito ódio de sua namorada por tê-la visto em companhia de outro homem, um “negão”, em um boteco próximo a sua casa. E declarou: “ Eu amava muito essa mulher, mas quando a vi me traindo, todo esse amor virou ódio”. Porém, mesmo cientes das poucas  declarações do assassino, não podemos ter segurança para delimitar um psicodiagnóstico ––– ante o crime bárbaro a sociedade fica sequiosa por justificativas para a conduta errante de seus membros. No entanto, evitemos perder a compostura clínica em diagnósticos ligeiros e considerações mirabolantes.

Quanto ao caso, aqui descrito, ainda sabemos que o assassino enfurecido arrancou as vísceras da namorada espalhando-as no local do crime, mas levando consigo o coração dela até um bar onde pediu que o órgão fosse fritado e servido como tira-gosto. Em uma apreciação ligeira, observamos que após o fastígio do ato perverso –– não o confundamos apressadamente com perversão ––– de esquartejar sua vítima, o autor ainda embrulha o coração dela e o leva consigo para comê-lo depois calmamente; notamos que não houve apenas a momentânea explosão irascível do ato de matar o ser amado.  Contamos, enfim, com fragmentos do caso que ao menos manifestam uma situação extrema de ciúme, embora isso não seja suficiente para, derradeiramente, pensarmos em perversão, em psicopatia, em psicose passional etc. Em relação a José, o assassino, também não se sabe se cometeu outros crimes da mesma natureza ou baseados em rituais de esquartejamento.

Sob um ponto de vista "culturalista" vale ressaltar que o varão nordestino,  sertanejo, pode ser pouco tolerante a ter que adornar a fronte com uma ignóbil cornucópia que não sirva apenas para colocar flores e frutas. Mas não pensem, os mais afoitos, que estaria aí a justificativa para o execrável ato de matar o ser amado e arrancar-lhe as vísceras; não se pode negar, porém, que o sujeito cornífero é tomado por ciúme do objeto amado e por marcante hostilidade contra o seu rival no plano amoroso ––– vale remarcar que o ciúme é um afeto natural como a tristeza, estando presente nas relações amorosas, fraternais etc.  Mas nas raias do ciúme exacerbado, o sujeito ciumento é tomado  por um afeto sôfrego e  aparentemente paradoxal pelo rival.

O filme nacional “Estômago” (2008) narra a história de um nordestino em São Paulo que através de seus dotes culinários consegue ascender socialmente, porém devido a uma situação de traição envolvendo sua namorada e seu chefe, o protagonista Raimundo Nonato irá  assassiná-los e ser preso; outra semelhança com o caso de José também se faz presente no suposto ato de canibalismo que o personagem pratica após o duplo assassinato.   

Talvez o exemplo máximo oferecido pela literatura seja o de Otelo, personagem da peça homônima de Shakespeare, que ao cair na trama do ardiloso Iago, acredita que sua esposa Desdêmona o traía com seu tenente e amigo Cássio; e por isso, absorvido por um ciúme ensandecido, Otelo mata sua amada, sufocando-a. Notadamente em ambos ––– em Otelo e no homem que arrancou o coração ––– há, por ciúme, o ímpeto de aniquilar o ser amado, como se esse fosse realmente um objeto que eles possuíam; e que com esse feito, de algum modo, congelariam o ideal amoroso; também há a peculiar presença marcante de um rival preciso, que para Otelo era seu tenente Cássio e no caso de José provavelmente fosse o “negão”. É crível que poucos abraçariam a tola pretensão de diagnosticar, psicologizar, um personagem ou um autor a partir de sua obra, embora saibamos que a arte prefigura e ilustra as paixões humanas. Somente James Joyce,  que dedica sua única peça “Exilados” à questão da traição e do ciúme, para julgar que o tema do ciúme tem uma abordagem “ incompleta”  em Otelo de Shakespeare. Joyce aturdido por questões em relação à fidelidade de sua mulher Nora ––– que não parecia oferecer motivos que maculassem sua condição de esposa –––  chega a perguntar-lhe, em uma carta, se Giorgio era realmente filho dele, pois Joyce observa que houvera pouco sangue no ato de defloramento e lhe indaga se, na mesma época, ela havia copulado com mais alguém. Pois é, nem os gênios estão a salvo das tribulações próprias aos sentimentos e afetos mundanos. 

Outro exemplo máximo, já em nossa literatura, é o de Bentinho e Capitu em Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual o personagem Bentinho é tomado por um ciúme de contornos delirantes que chega a questionar a paternidade de seu filho junto a Capitu. 

 O assassino José  confessou que ao julgar que sua namorada o traía, todo o seu amor havia “virado”  ódio, ou  seja, houve a transformação repentina  de afeto; curioso notar que nos registros judiciais é incomum haver arrependimento confesso nos casos de homicídios passionais. Na psicanálise, sabemos que  amor e ódio são faces de uma mesma moeda e que coabitam  o psiquismo neurótico. Quanto a José, por suspeitar que havia sido traído após a cena do boteco, o amor tornado ódio não o deixava pensar “ em mais nada”; depois alegou que, por a namorada falar que ele não teria “ coragem” de se vingar, resolveu cometer,  após 2 dias, o crime.  

Enfurecido e tratando a amada como posse, ele a mata e leva seu coração consigo, numa tentativa funesta de manter seu coração quando talvez não tivesse mais seu amor que independe de um orgão. E  José  come o coração, num gesto canibalístico, primitivo, mítico, de incorporação (de fusão)  do objeto amado e odiado.  Ao menos, em seu possível amor louco, o coração dela não pertenceria a mais ninguém –– daí o ato visceral, real, a atuação concreta perante a dor e o desequilíbrio da perda do ideal amoroso.  

* Texto publicado no Cinform Online em outubro de 2011

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