Western saroio*




A propaganda oficial  sergipana insiste, maciçamente,  na propagação de um ideal  de desenvolvimento nunca antes esperado nestas terras. A alcunha ––– que deveria soar como pilhéria ––– de “ a capital da qualidade de vida” para Aracaju  tantas vezes foi repetida que se tornou uma verdade a ser gritada e macaqueada pelas ruas -–– inevitável a lembrança  da surrada máxima do nazista Goebbels, ministro de Hitler, a respeito da verdade forjada a partir de uma mentira repetida cem vezes. 

          Não parece que este slogan foi apenas uma necessidade política; também foi um refúgio para o orgulho opresso de seus habitantes que tendem a superestimar características locais ––– embora seja natural a altivez que infla o peito diante das maravilhas de sua terra. Porém, como em uma torcida raivosa (e descerebrada) de futebol, o bairrismo provinciano forma uma corrente cega, e igualmente raivosa, contra os que não compartilham de suas raízes e ancestrais. Lembro que ao acompanhar, pela televisão, uma greve de funcionários da afiliada aracajuana da principal rede de televisão do país, um sindicalista, em seu discurso bilioso e combativo, pregava que o diretor da sucursal aracajuana era um “forasteiro” vindo do Sul e devido a isso não deveria estar no comando; como em um prosaico vilarejo de filme de faroeste, faltou ao belicoso sindicalista exigir que o forasteiro deixasse a cidade antes do pôr do sol. O termo “ forasteiro” parece que também fora usado em uma disputa política contra um candidato ao governo que não era sergipano, ––– em suma, eram dois forasteiros, estrangeiros, em seu próprio país.

Livrados da tentação de mergulharmos em questões políticas e sindicais, podemos observar que a repetição desse termo, deste significante, “ forasteiro” –– que nos dicionários  também designa o que é estranho, estrangeiro, peregrino, –––  talvez revele algo de nosso espírito provinciano. Também é fácil encontrar propagandas e admoestações midiáticas em prol do consumo de produtos sergipanos, principalvemente por brotarem do calor de nossa terra e do suor de nosso povo aguerrido; isso desde laticínios e sucos de frutas até manifestações folclóricas e culturais. A questão está longe do disparate, da heresia, de negar o valor das manifestações folclóricas de um povo; o que é enervante (e muito chato) é a obrigação de uma reverência inquestionável  que deve sobrepujar as predileções individuais, cabendo aos artistas temerem a desconsideração, da reverência obrigatória ao folclore, em suas músicas, filmes etc. 

Junto ao termo “ forasteiro” poderíamos verificar outros nada decrépitos como “ artista da terra” e “artista local” que reduzem o artista e sua produção aos estreitos horizontes do melancólico refúgio provinciano. A relevância estética do artista e sua obra fica, sensivelmente, atrelada à sua localidade; há um tácito acordo para que o artista local não seja criticado, principalmente se sua obra estiver eivada de referências folclóricas mesmo que forçadas.  Semelhante à torcida de futebol raivosa, grupinhos de intelectuais e universitários condenam ou desprezam os heréticos que não comungam, irrestritamente, dos valores da cultura popular.  Se a categoria “ artista da terra” forja uma identidade, também acarreta certo isolamento e sectarismo.

Certas disputas e perseguições  não levam a nada em uma provinciana capital onde a atividade intelectual e artística tem bafio de mero diletantismo, de hobby,  sendo considerada  passatempo excêntrico que tem por recompensa olhares debochados. Restam, enfim, a babaquice das querelas entre grupinhos e a lassidão das queixas por falta de reconhecimento.

Em Sergipe, há a indelével tendência a engrandecer as características locais: “país do forró”, maior árvore natalina etc. Não  pretendo contradizer os que concordam com essas características, mas é notório que seus habitantes se aferram a elas em busca de afirmação de alguma superioridade regional e nacional. O “ narcisismo das pequenas diferenças” que inflama torcidas, grupos religiosos, certas minorias etc também se faz presente em nosso adorável rincão através dessa defesa irrefletida dos valores locais.

 Guerrear,  unicamente, pela prevalência desses valores impende o intercâmbio de ideias e cultruras, tornando a mentalidade local mais estéril e ensimesmada.  Se o atraso histórico de Sergipe  é patente, e foi descrito pela pena de historiadores da cultura e da literatura, não devemos recalcá-lo, soterrá-lo, ––– em uma tentativa sôfrega para evitar que ele não enegreça o orgulho do suposto desenvolvimento atual ––– mas sim digeri-lo para que seja elaborado em novas produções da cultura. Quando um  sujeito neurótico se encontra sob forte recalque, concentra grande parte de sua energia psíquica na evitação de que conteúdos inconscientes angustiantes aflorem em seu pensamento consciente. Esses conteúdos retornarão de algum modo a contragosto do sujeito, causando a sensação de algo “ estrangeiro”, estranho e angustiante. 

O “recalque” na cultura não implica que manifestações tidas como indesejáveis sejam dissipadas. O mal-estar marca a presença do que se preferia esquecer; esta questão pode ficar mais clara ao pensarmos como o nazismo representa um notório incômodo para Alemanha atual que continua a ser retratado em filmes, livros etc. 

Talvez a tentativa de imprimir certa grandiosidade às características e realizações locais sirva para dotar a preconceituosa mentalidade provinciana –– que oprime e se fecha diante do novo, do forasteiro, –– com um fajuto ar cosmopolita.  

E o western  provinciano segue, enfim, pálido sem ao menos ter um pouco do encanto do faroeste de um Sergio Leone. 

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* Texto publicado no Cinform online em setembro de 2011






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